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Práticas de Formação em e para/com públicos de Acessibilidade: A Experiência do Programa Educativo do Centro Cultural Oi Futuro – RJ

Many Pereira dos Santos e Rafaela Zanete

Resumo: O presente capítulo apresenta a experiência do Programa Educativo do Centro Cultural Oi Futuro, localizado na cidade do Rio de Janeiro, em práticas de formação para e com públicos de acessibilidade, com foco nas ações de 2019 e de uma experiência realizada em 2017.  

            Inaugurado em maio de 2005, o Centro Cultural Oi Futuro fica no endereço que fora ocupado por muitos anos pelo Museu do Telephone, onde anteriormente também funcionou a Estação Telefônica Beira-Mar, inaugurada em 1918. Com curadorias próprias, o Centro Cultural Oi Futuro aposta no fomento e na disseminação de novas linguagens artísticas. O espaço dispõe de condições técnicas que possibilitam a constante experimentação, potencializando a convergência entre a arte, a ciência e a tecnologia. A própria arquitetura, com galerias expositivas flexíveis e um teatro multiuso, admite várias configurações palco-plateia, estimula a investigação artística e a interação dos visitantes com o espaço. Além de disponibilizar ampla agenda gratuita, o espaço conta com um Programa Educativo que atende a 30 mil pessoas por ano – sendo 19 mil estudantes, principalmente da rede pública.

            O Oi Futuro também faz a gestão do Musehum – Museu das Comunicações e Humanidades, inaugurado em janeiro de 2020, e que conta a história do desenvolvimento tecnológico das comunicações a partir da ótica das relações humanas. O projeto é uma evolução do Museu das Telecomunicações, em atividade há 13 anos, que teve suas instalações totalmente remodeladas em função de uma nova proposta conceitual e de identidade. Sua reserva técnica conta com um acervo de mais de 130 mil itens.

            O Centro Cultural Oi Futuro dispõe de cadeira de rodas, banheiros com barras de apoio, acesso por elevador a todos os andares, além de sinalização em braille em bebedouros e elevadores. O Museu oferece atendimento por áudio e vídeo a pessoas com deficiência visual, peças do acervo sensíveis ao toque e espaços adequados para circulação de cadeiras de rodas.

            Dentro das atividades do Programa Educativo Oi Futuro, atuamos de maneira transversal, a partir do eixo “Acessibilidades” para responder às questões suscitadas nas atividades e ações junto aos públicos de instituições especializadas no atendimento a pessoas com deficiência; e em projetos voltados para inclusão e cidadania, em consonância com a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, Lei Brasileira de Inclusão, também conhecida como Estatuto da Pessoa Com Deficiência (BRASIL, 2015).  No seu artigo primeiro, destaca ser “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (BRASIL, 2015, s.p).

            Neste sentido, o Programa tem como principal linha de atuação a criação de contextos provocativos, de modo a constituir um ambiente coletivo de aprendizagem e promover a participação de públicos diversos em suas origens, gerações, grupos sociais, no encontro com a cultura, a arte, a tecnologia, a memória e a história, as telecomunicações e a comunicação humana; conjugando passado, presente e futuro.

            No período de 2017 a 2019, as atividades realizadas pelo programa educativo, a partir do eixo “Acessibilidades”, envolveram visitas mediadas ao museu e exposições para pessoas com deficiência, surdos, grupos da terceira idade e de vulnerabilidade social, estações educativas acessíveis, formação em libras, produção de material em vídeo-libras para divulgação de atividades do educativo, formações artísticas em dança e expressão corporal, realizadas por educador surdo e profissional com deficiência visual, para públicos com deficiência, ou não.

Também foi realizado o Programa Continuado, que tem como meta principal desenvolver de forma progressiva e colaborativa, junto às instituições de perfil sócio educativo e cultural, e de agentes sociais/culturais, experiências e vivências nos espaços do Oi Futuro e dos parceiros; objetivando não só o aprofundamento sobre as práticas de mediação e atividades educativo artísticas, bem como a reflexão sobre a transformação dessas práticas no próprio museu e na vida cotidiana dos sujeitos envolvidos.

            Destacamos o desenvolvimento de parcerias com instituições no atendimento à pessoa com deficiência (CIAD – Centro Integrado de Atenção a Pessoa com Deficiência), a grupos em situação de rua, abrigamento e  vulnerabilidade social (Associação São Martinho e Rede de Abrigos e de Atenção Básica e Especial vinculados ao Projeto Circulando, da Prefeitura do Rio),  a neurodiversos (Residência Assistida Israelita – Casa RAI e CAPS- Centro de Atenção Psicossocial), a surdos (INES- Instituto Nacional de Educação de Surdos), a refugiados e estrangeiros, (ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidades para os Refugiados e ONG Fala Brasil), à população LGBT (ONG Arco-íris);  dentre outras, como a ONG Remanso Fraterno, a União dos Cegos no Brasil etc.

            A partir desse trabalho que vimos desenvolvendo no campo da arte e educação, realizando programas, projetos e ações para públicos diversos, despertaram-nos de maneira mais específica algumas questões: como pensar a acessibilidade a partir e por meio da arte? Como discutir sobre os processos artísticos e o corpo como forma de sentido? Como aprimorar a comunicação acessível para atender às especificidades de cada sujeito? Quais linguagens podem ser utilizadas e/ou criadas para atender à diversidade dos públicos e promover a acessibilidade? Como desenvolver essas ações em processos colaborativos e cocriados? Como dar protagonismo aos diversos públicos? Como os espaços de cultura podem exercer esse papel?    

A experiência do Programa Educativo      

            Para esse capítulo, trazemos a experiência do Programa Educativo nas ações de formação para e com públicos de acessibilidades, apresentando algumas vivências e experiências por meio de práticas artísticas coletivas; promovendo também uma reflexão sobre a autonomia e o protagonismo da pessoa com deficiência.

            Esse modeko de formações possibilitou dinâmicas de experimentação, trocas e debates entre os participantes, os artistas e o corpo educativo do Centro Cultural, no qual também tivemos a preocupação de que a pessoa com deficiência fosse participante ativa na elaboração e realização das atividades, e não somente público participante, como preconiza o lema do movimento dos direitos das pessoas com deficiência; “nada sobre nós, sem a nossa presença”.

            Trabalhamos muito o tema do pertencimento, da empatia e da sociabilidade, visto que os espaços de cultura são considerados por eles, em sua maioria – e, de fato o são –, espaços pouco inclusivos, por não se pensar em ações efetivas para além de serviços pontuais como tradução em libras, audiodescrição, uma visita acessível, rampas, pisos táteis, maquetes etc. Ou seja, saímos da lógica de pensar menos a acessibilidade sendo “cumprida” por meio de recursos e mais pensada como integrada à missão e atuação dessas instituições; que não devem pensar em ações somente “para”, mas também, “com” e “por” eles.

            Buscamos estar alinhados a uma visão de culturaque tem como diretriz o compromisso de promover ações que vão ao encontro das necessidades e interesses dos diferentes públicos, cujos objetivos sejam tanto o de melhorar as condições de acesso, como também o de abrir espaço para novas possibilidades de leitura de mundo; por meio de distintas linguagens artísticas e estabelecendo uma conexão com a cidade, com os modos de vida e seus repertórios.

            O crescimento no desenvolvimento de programas, projetos e atividades realizados para e com públicos de acessibilidade foi se dando muito também no campo da experimentação e estudo, envolvendo escutas constantes. Podemos dizer que o Programa Educativo atua intensamente nessa perspectiva de laboratório de práticas. Entendemos que ações que se estruturam dessa forma facilitam que os assuntos e desafios que se apresentam sejam abraçados pelo corpo institucional, bem como pelos nossos pares, parceiros e públicos.

            Pensar no âmbito da formação quando se fala em acessibilidade, nos remete muitas vezes ou a proposições voltadas para a pessoa com deficiência ou de formação em acessibilidade para pessoas sem deficiência. A exemplo: uma oficina para pessoa surda, uma atividade educativa para o público cego. Ou também, um curso ou oficina inicial em Libras, audiodescrição, braille etc. Qualquer uma dessas proposições já são muito válidas e necessárias, especialmente quando pensamos nos caminhos que as instituições culturais, as escolas e demais ambientes de ensino e produção de conhecimento ainda precisam percorrer nesse sentido; não somente quanto aos recursos, mas essencialmente no aspecto atitudinal, foco de nossas ações e cujo objetivo é o de fazer junto.

            O ano de 2017, colocou-nos em contato com duas pessoas e profissionais muito especiais através do trabalho que vínhamos realizando no campo da acessibilidade. Uma é a Clara Kutner, diretora e bailarina, e que vem desenvolvendo um trabalho importante com a dança flamenca e a pessoa surda. O outro é o Emanuel de Jesus, artista visual, oriundo da periferia do Rio de Janeiro, com um trabalho artístico de grande sensibilidade por meio do vídeo e da fotografia. Por conta de uma tuberculose recente, ele teve perda de boa parte da visão.  A experiência de Emanuel foi importante, na medida em que ele teve que se redescobrir e reconfigurar sua produção artística com a baixa visão.

            A partir desse encontro, nasceu o “Acessibilidade em Movimento”, um ciclo que se propôs a ser um convite a vivenciar experiências artísticas, por meio de práticas coletivas. O Ciclo, como o nominamos, foi realizado em um formato de Rodas de Conversa e Laboratórios de Experimentação Acessíveis, realizados por diversos artistas que utilizam o corpo e o movimento e que vêm trabalhando as questões de acessibilidade em suas práticas artísticas e experiências pessoais. Foi um formato inovador, realizado pela primeira vez no Rio de Janeiro; onde também tivemos a preocupação de que a pessoa com deficiência fosse um participante ativo no processo.

            O Encontro aconteceu em dois dias, contando com quatro laboratórios e duas      rodas de conversa. A proposta era a de que as oficinas tivessem pessoas com e sem deficiência; que houvesse uma integração. As atividades interligavam diversas linguagens artísticas (dança, teatro, música), com públicos diversos (pessoas em cadeiras de rodas, com mobilidade reduzida, cegos, neurodiversos, pessoa surda e demais públicos). A ação teve muita adesão e participação, e saímos dessa experiência com o entendimento de que esse era um caminho inicial que abria muitas possibilidades e formatos. Esse encontro também nos inseriu em uma rede potente de profissionais de diversas áreas artísticas, da cultura, dos museus, do social etc., integrando pessoas com e sem deficiência.

            Parte dessa rede construída seguiu conosco, participando de programações e atividades do Programa Educativo, como também passando a propor ações; tendo um canal de escuta aberta e em diálogo constante. No Ciclo do Acessibilidade em Movimento participou um educador surdo que fazia parte do time do educativo do Oi Futuro, além de ser formado e atuar também como ator e professor universitário. Na ocasião, ele participou junto a Clara Kutner na Oficina de Dança Flamenca para surdos.

            Vínhamos realizando com ele um trabalho até então mais voltado para visitas mediadas às exposições para grupos de pessoas surdas e na formação em Libras da equipe do Educativo e do Centro Cultural. No entanto, no ano de 2018, revimos essa prática, pensando numa ampliação dos múltiplos conhecimentos dele como educador, ator e professor para desempenhar novas práticas e em novos formatos, bem como revimos os públicos que poderiam se relacionar e participar dessas atividades. Passamos, assim, a partir de 2018, a oferecer além das visitas mediadas, estações educativas em Libras, formação em Libras, produção de material em vídeo-Libras, bem como formações artísticas em expressão corporal e em práticas iniciais em Libras para públicos com e sem deficiência.

            O Acessibilidade em Movimento também nos aproximou de um profissional da educação física cego, Álvaro de Souza, que participou de quase todas as oficinas do evento e que, posteriormente, passou a estar presente em atividades do Educativo e Centro Cultural, estreitando esse laço de proximidade com o programa. No dia 08 de dezembro de 2018, realizamos uma atividade em comemoração ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, chamada o “O Corpo além da visão”, que consistiu em uma roda de conversa que propunha refletir e trocar experiências sobre atividades educativo-artísticas voltadas para pessoas cegas e com baixa visão, bem como sobre as práticas realizadas em espaços de cultura e educação.

            Após a conversa, tivemos uma apresentação de dança com o professor cego que, à época, ministrava aulas de dança de salão em instituições de atendimento à pessoa cega e com baixa visão, como a ONG Girassol e a União dos Cegos no Brasil. Ele levou um grupo de alunos para essa apresentação no Centro Cultural. Desse evento, saímos com um propósito e compromisso de, em 2019, realizar ações conjuntas e coletivas com os participantes da Roda.

            De fato, nós fizemos uma parceria com a União dos Cegos no Brasil para o Programa Continuado e elaboramos com ele a realização de um Curso de Dança com duração de dois meses, com foco na dança de salão, para pessoas cegas e com baixa visão. Era, assim, um curso idealizado e desenvolvido por um profissional cego para pessoas também cegas ou com baixa visão. No primeiro dia do curso, tivemos como participantes uma bailarina formada, vidente, que já havia tido algumas experiências com pessoas com deficiência.

Essa participação de uma pessoa vidente foi bem interessante e se apresentou muito desafiadora para o professor, que relatou desenvolver até então esse trabalho de dança somente para pessoas cegas ou com baixa visão. Essa integração entre videntes e cegos tornava o desafio ainda mais potente. Nas aulas seguintes, integrados a um grupo que oscilava entre 10 a 18 pessoas, tivemos também a participação de uma família. Era um casal com um filho em cadeira de rodas e com outras deficiências decorrentes de uma paralisia cerebral. Um desafio ainda maior para o professor e para o grupo que agora integrava pessoas com múltiplos repertórios e conhecimentos sobre dança, além de unir pessoas com e sem deficiência.

            O Curso teve duração de quase dois meses, com dez aulas e um resultado realmente transformador. Mobilizamos ainda, a partir dessa formação, uma rede de pessoas com deficiência, familiares e profissionais que atuam com pessoa cega e com baixa visão; inspirados pelo pensamento de Carmem Mörsch, que aponta que a educação nos museus e espaços culturais está amparada em um cruzamento de quatro discursos que operam na Afirmação, Reprodução, Desconstrução e Transformação.

            Na dimensão transformadora, na qual nos baseamos para estruturação das práticas apresentadas neste capítulo, todos juntos criam as pontes que unem a instituição, com seus espaços e suas funções socioculturais e com seus diversos agentes internos e externos. Compreendemos, assim, que o desenvolvimento de um programa de educação está na potência da relação e desenvolvimento de seus públicos, que não se dá apenas nas visitas mediadas, mas também ocorre promovendo uma programação que contemple o público na sua singularidade.

            Compartilhar essa experiência nos ajudou a compreender melhor os caminhos alcançados, a conhecer outras experiências de parceiros, colegas e instituições e a construir coletivamente novas possibilidades. O desafio foi grande, mas prazeroso e satisfatório. Mediar esse campo entre pessoas, práticas e as instituições não é uma tarefa fácil, mas compreendemos ser um bom caminho.

            Assim, chegamos ao ano de 2020 com o propósito de continuar e aprimorar o trabalho educativo do museu, com ênfase na acessibilidade e na ampliação de públicos. Diante deste cenário de pandemia e isolamento social, passamos a refletir e repensar a atuação do Programa Educativo no digital, como sendo também um ambiente para a produção e realização de atividades, dinâmicas, interações e troca de conhecimento. O Educativo online se configura, neste sentido, como uma plataforma fundamental para ativar estes contextos de aprendizagem coletiva e a dinamização de conteúdo.

            Dessa forma, foi lançado no mês de maio, o Curso Básico em Acessibilidade Cultural, modalidade EAD (ensino a distância), com foco em acessibilidade atitudinal e comunicacional, para todo o Brasil. Nesse curso, passamos conceitos iniciais sobre o tema e discutimos os relatos de experiência do Oi Futuro e de outras instituições culturais. Esse momento permite não só refletir sobre as nossas práticas em acessibilidade, mas também, aprimorarmos-nos e continuarmos a desenvolver um trabalho educativo que tantos resultados têm apresentado, em termos de atendimento ao público com deficiência.

            A realização de ações como essa nos apresenta a novos ambientes e contribuem para ampliar o alcance das ações propostas e dos públicos atendidos; o que por fim, amplia os modos possíveis de ser um museu: um museu que transpassa suas barreiras, conceitos e lugares.

Referências:

BRASIL. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência de 2015. 2015, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em 12 abr. 2020.

MÖRSCH, Carmem. Numa encruzilhada de quatro discursos – Mediação e educação na documenta 12: entre Afirmação, Reprodução, Desconstrução e Transformação. Periódico Permanente. Nº 6 / fevereiro 2016. Disponível em: <http://www.forumpermanente.org/revista/numero-6-1/conteudo/numa-encruzilhada-de-quatro-discursos-1-mediacao-e-educacao-na-documenta-12-entre-afirmacao-reproducao-desconstrucao-e-transformacao-2. Acesso em: 12 abr. 2020.

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