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Sumário interativo

O essencial é invisível aos olhos: a concepção de um planetário para quem não vê

Carolina de Assis

Resumo: Quando um grupo escolar visita um planetário, espera-se do público um conjunto de emoções: curiosidade, alegria, arrebatamento. Mas, se entre os alunos, há um aluno cego, como não deixar que esta experiência se torne fonte de frustração?Muitos são os desafios de se produzir atividades de temática astronômica para o público com cegueira e baixa visão, sobretudo em ambientes de educação não formal. Especialmente quando, mesmo bastante favorável ao tema, a instituição possui recursos – tempo, financiamento e pessoal – escassos, e o investimento em atividades acessíveis é incipiente. No entanto, a necessidade de implementação de uma cultura de inclusão é urgente.

Neste texto, compartilho a experiência de criação de uma sessão de planetário voltada para pessoas com deficiência visual, realizada pela equipe do planetário do Museu Ciência e Vida em 2015. Ao longo do texto, são descritos a sua metodologia de apresentação, suas principais referências, as limitações enfrentadas e o processo de construção dos modelos táteis e sonoros que a compõem. Ao fazê-lo, espero demonstrar que a adaptação de atividades para este público não é apenas possível, mas também perfeitamente razoável, mesmo em condições adversas. O importante é dar o primeiro passo.


            O direito de pessoas com deficiência à plena participação em qualquer ação realizada dentro de equipamentos culturais é assegurado desde 2016, quando entrou em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015). De fato, a imperatividade do acesso amplo às mesmas oportunidades para todos já deveria ser assegurada desde 2008, quando entrou em atuação o protocolo facultativo adotado pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinado pelo Brasil (BRASIL, 2009), ou ainda, desde a Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948. Desta forma, há muito que a oferta de atividades inclusivas à população dentro do espaço museal transcendeu a obviedade e o bom senso: é um exercício de cidadania.

            Porém, apesar dos avanços no estabelecimento de uma cultura de acessibilidade nestes espaços – um levantamento recente indica que ao menos 110 instituições brasileiras são sensíveis ao tema (NORBERTO ROCHA et al., 2017) –, o atendimento desta população em espaços museais ainda é eventual (LIMA, 2012) e muitos dos mediadores não se sentem aptos para o atendimento a este público (CARLÉTTI; MASSARANI, 2015; NORBERTO ROCHA et al., 2021). Na ocupação destes espaços, ainda há outro problema: faltam educadores, funcionários e gestores. É compreensível, portanto, a baixa frequência deste público em museus, onde há pouca representatividade e parca democratização do conhecimento (SCHUINDT; SILVEIRA, 2019). Quando existente, a acessibilidade do espaço normalmente se detém na acessibilidade física, atendendo ao deslocamento de pessoas com mobilidade reduzida e pessoas em cadeiras de rodas (NORBERTO ROCHA et al., 2020; SCHUINDT, 2019; ABREU et al., 2019). Uma estrutura que adote o design universal, no entanto, ainda é uma grande utopia.

Este é o caso do Museu Ciência e Vida (MCV), da Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância (Fundação Cecierj), instituição onde se executou o projeto tema deste capítulo. Situado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro, uma região desprovida de equipamentos culturais e educativos, o MCV possui algumas adaptações estruturais (NORBERTO ROCHA et al.., 2017, p. 57) e oferece à população um amplo leque de atividades que visam a socialização do conhecimento científico, incluindo as sessões do planetário Astronauta Marcos Pontes, um dos carros-chefes da programação regular do museu.

Porém, poucas dessas atividades têm caráter inclusivo. Em seus dez anos de existência, a maioria das iniciativas em acessibilidade foram esporádicas: a participação no projeto Surdos-UFRJ, que capacitou mediadores surdos para a exposição Sustentabilidade (RUMJANEK, 2016, p. 57), e algumas poucas atividades com intérprete em Libras (não documentadas). No entanto, dois projetos começam a estruturar uma postura inclusiva mais perene: O essencial é invisível aos olhos (2015), que visa o atendimento de cegos e pessoas com baixa visão, e Libras – o som não se propaga no espaço (2019), voltado ao atendimento de surdos. Em abril de 2020, teria início o projeto O céu é azul, em parceria com a Escola Municipal Especial Mariza Azevedo Catarino (São João de Meriti/RJ), visando o atendimento de pessoas com autismo. Entretanto, este planejamento foi interrompido em razão da pandemia de SARS-COV-2. Todos esses projetos foram desenvolvidos pela equipe do planetário.

O atendimento a pessoas cegas e com baixa visão em planetários possui algumas barreiras específicas. Sendo a astronomia uma ciência essencialmente visual, seus objetos de estudo são alcançados através da luz, ainda que em diversos comprimentos de onda. No entanto, ainda que timidamente, o tema parece ser cada vez mais caro a planetários e observatórios (ABREU et al., 2019; SCHUINDT; SILVEIRA, 2019, p. 5).

Neste texto, apresentarei uma breve descrição das primeiras etapas da implementação do projeto O essencial é invisível aos olhos, visando descrever a experiência de concepção, montagem e apresentação da sessão de planetário piloto do projeto.

O essencial é invisível aos olhos

Em 2015, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) comemorou o Ano Internacional da Luz. Em comemoração, diferentes setores do MCV desenvolveram diversas atividades que dialogavam com o tema, incluindo a exibição, em parceria com o departamento de Física da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar/SP), de uma exposição tátil sobre óptica, intitulada Luz ao alcance das mãos.

 No tocante ao planetário, dois fatores contribuíram para a escolha por uma atividade para cegos: a requisição por parte da gestão do museu de uma atividade que dialogasse com a exposição citada, mostrando seu interesse em uma abordagem mais inclusiva, e a visitação de um grupo escolar ao museu, em setembro de 2014, que contava com um aluno cego. Impossibilitado de aproveitar a sessão de planetário, sua frustração, ainda que educada, evidenciou a grande falha no atendimento das sessões de planetário.

Obstáculos estruturais atrasaram o processo e dificultaram a concepção desta nova atividade, sobretudo a falta de um orçamento dedicado ao projeto, a agenda lotada e a ausência de uma equipe de planetaristas, que só viria a existir em março de 2015. Independentemente disso, a atividade deveria estar disponível para apresentação em 21 de maio de 2015, data da inauguração da exposição.

Sendo esta a oportunidade ideal para a introdução de uma cultura de acessibilidade nas atividades do planetário, decidi pela implementação de uma sessão de planetário acessível a pessoas cegas e de baixa visão, que poderiam usufruir dela quando da sua visitação escolar em turmas inclusivas, juntamente com alunos videntes. Para que esta pudesse ser usufruída pelos públicos espontâneo e escolar, a concepção do seu roteiro visou otimizar os temas de maior interesse do público e o conteúdo de astronomia trabalhado no Ensino Fundamental (BRASIL, 1996), apresentando os conceitos de sistema solar, identificação e sazonalidade do céu noturno, aglomerados estelares e constelações.

            A inexperiência na concepção de atividades acessíveis exigiu uma pesquisa sobre atividades semelhantes, sobre como ser um guia-vidente e, obviamente, sobre a produção de modelos sensoriais. Embora poucas iniciativas tenham sido encontradas em 2015, elas nos auxiliaram a elucidar as inúmeras dúvidas.

            Aqui gostaria de pontuar que esta era apenas uma das demandas da recém-formada equipe do planetário, que já estava envolvida em um projeto de teatro e ciência, na concepção de oficinas e no atendimento às 28 sessões de cúpula oferecidas semanalmente. À época, a equipe contava com as bolsistas Ester Zerfas, Isabella Santos, Cristiane Fernandes e Gabriela Almeida, cujo trabalho incansável (ainda que com suas bolsas atrasadas, produto da incipiente crise econômica do estado do Rio de Janeiro) tornou possível a execução dessas múltiplas tarefas. Elas participaram ativamente das pesquisas de materiais e da produção dos modelos desenvolvidos, testando o roteiro definido para a sessão.

            Dentre as nossas referências, destaco as experiências de Sebastián Musso, então presidente do Centro de Estudios Astronómicos de Mar del Plata (Argentina), cujas oficinas foram gentilmente cedidas por meio de contato pessoal. Um dos primeiros a desenvolver modelos táteis e sonoros para a apresentação de conceitos astronômicos, seu trabalho inspirou outros, sendo o mais notável as atividades desenvolvidas pela equipe do Observatorio Astronómico de la Universitat de València (Espanha), também iniciado em comemoração a um ano temático – 2009: o Ano Internacional da Astronomia. Dentre estas, duas foram referências importantes para a nossa sessão acessível: o projeto A Touch of the Universe (A TOUCH OF THE UNIVERSE, [2015])e a sessão El cielo em tus manos (ORTIZ- GIL et al., 2019).

            Financiado por grandes associações mundiais – entre elas, o Escritório de Astronomia para o Desenvolvimento da União Astronômica Internacional – em conjunto com o Observatorio Astronómico de la Universitat de València e o Osservatorio Astronomico di Brera (Itália), o projeto já disponibilizava, em 2015, a modelagem e impressão 3D de modelos táteis da lua (modelados a partir de dados da sonda Clementine) e de semiesferas com as constelações do Hemisfério Norte. Atualmente, o projeto se expandiu, disponibilizando a modelagem para a impressão 3D de todos os planetas rochosos.

            No Brasil, poucas, mas profícuas experiências foram encontradas à época. Dentre elas, destaco a experiência idealizada pelo Grupo de Amadores da Astronomia, coordenada por Claudio Luiz Carvalho, de um planetário para deficientes visuais (PAIVA, 2014); as atividades Calendário lunar e A Terra como um grão de pimenta, coordenadas pela professora Maria Helena Steffani, do planetário José de Souza Herdi (RIZZO et al., 2014); e a experiência do Planetário de Vitória, que adaptou uma das suas sessões de cúpula, além de criarem seus próprios modelos para apresentação do conteúdo ministrado na sessão. Esta atividade foi coordenada por Rosane Corradi Tristão (TRISTÃO, 2014). Estas atividades foram realizadas entre 2011 e 2014 e têm diferenças intrínsecas entre si em metodologia e recursos utilizados, proporcionando diferentes graus de autonomia. Conhecendo-as, nossas limitações ficaram mais claras, considerando o espaço e o tempo que tínhamos à disposição.

            A partir destas reflexões, o roteiro foi estruturado para que a sessão pudesse ser dividida em três blocos perfeitamente intercambiáveis. No primeiro, o conteúdo de identificação do céu noturno seria trabalhado com modelos táteis das constelações sazonais, das Plêiades e da esfera celeste; no segundo, o sistema solar, usando dois conjuntos de modelos táteis: um sistema solar em escala de tamanho e outro dos oito planetas, evidenciando com texturas e diferenças de profundidade suas características observáveis; no terceiro, ocorreria o contato com o equipamento de projeção e proporcionaríamos a “experiência  do anoitecer”: o sentimento de arrebatamento que nos atinge ao observar o anoitecer no planetário, através de modelos sonoros de estrelas e constelações.

            Porém, sem recursos financeiros, o uso de recursos ópticos ou tecnológicos – como ampliadores de tela ou audiodescrição – era impossível, bem como a contratação de um serviço profissional para a produção musical e a sinalização dos espaços. E a fabricação do material adaptado teria de ser feita artesanalmente.

            Despidos de recursos, a produção do modelo sonoro foi amadora e só foi possível pela experiência da planetarista Isabella Santos, tecladista, que atuou no desenvolvimento do nosso modelo sonoro da esfera celeste, inspirado em parte nos modelos sonoros desenvolvidos por Sebastián Musso e pelo Observatorio de València. Na Figura 1, apresento um registro de Isabella durante a concepção deste modelo.

            Para tanto, criamos um sistema de associações entre sons e constelações, tendo como base a nona sinfonia de Beethoven. Neste sistema, atribuímos a um conjunto de constelações o som de diferentes instrumentos. Algumas constelações com estrelas de baixa magnitude tinham ainda um segundo sistema de associação, relacionando a altura do som, do grave ao agudo, a uma escala de coloração das estrelas, do vermelho ao azul.

            A austeridade orçamentária impedia a compra de insumos e nossa única aquisição foi uma esfera oca de isopor de 90 centímetros de diâmetro. Assim, os materiais usados eram de baixo custo ou de consumo, coletados no depósito do museu, tornando a opção de texturas bastante restrita e de pouca durabilidade. Foram utilizados papelão, cola (quente, branca e de isopor), barbante, alfinetes de cabeça redonda, tinta acrílica e PVA, isopor em folha, palitos de churrasco, bolas de isopor, papel, areia, tinta em relevo e arame. Alguns registros desses primeiros modelos – e do seu processo de confecção – podem ser vistos na Figura 2.

Início de descrição: Isabella Santos, sentada dentro do planetário, em frente ao teclado, compondo o modelo sonoro em associação com a imagem que está sendo projetada. Fim da descrição.
Figura 1: Execução do modelo sonoro da esfera celeste feita ao vivo, com um teclado. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Essas limitações intensificaram o desafio de transposição das características visuais para a linguagem tátil. E esse foi o ponto mais sensível de todo o processo de concepção dos modelos táteis. Como existia a possibilidade do seu uso nas sessões de cúpula, era extremamente importante que os modelos pudessem mimetizar as características visuais da projeção.

Após os testes com diferentes materiais, produzimos dois modelos das constelações de Órion, Escorpião, Capricórnio e Cruzeiro do Sul; um modelo do aglomerado estelar das Plêiades e um das estrelas da constelação do Cruzeiro do Sul com escala de distância em relação à Terra e modelos dos planetas do sistema solar.

A confecção do modelo da esfera celeste foi um desafio à parte. Havia a necessidade de manter a fidelidade da proporção e da distância entre as constelações. Testamos diferentes metodologias para isso e acabamos por usar o próprio equipamento de projeção do planetário como referência para a posição das estrelas. Algumas etapas deste processo estão registradas na Figura 2.

Início da descrição: Composição de três fotografias mostrando etapas do processo de confecção do modelo tátil da esfera celeste. Na foto da esquerda, o registro do processo de desenho das constelações: a cúpula da esfera foi colocada sobre o projetor digital do planetário para que o céu fosse representado no verso da cúpula do projetor. Alfinetes marcam a posição das estrelas e linhas desenham as constelações ocidentais. Na foto superior direita, um registro da pintura da parte externa das cúpulas. Na foto inferior direita, Ester Zerfas coloca alfinetes nas posições das estrelas na parte superior da cúpula, usando a marcação registrada na imagem esquerda como referência. Fim da descrição.
Figura 2: A produção do modelo tátil da esfera celeste foi feita em três etapas. Fonte: Acervo pessoal da autora.

            A sessão foi testada pela equipe três vezes, usando todos os modelos (com exceção das esferas). A principal mudança trazida com os testes foi o estabelecimento da experiência da cegueira para o público vidente. Por último, ainda nos faltava testar e validar os modelos com um consultor cego. E, obviamente, talvez ter de repetir todo o processo, dependendo dos resultados da validação.

            A validação dos modelos foi um desafio equiparável à produção dos modelos táteis. Com a aproximação da data de estreia da exposição, o caminho burocrático para o teste oficial da funcionalidade dos modelos táteis por técnicos do Instituto Benjamin Constant (IBC) nos era impossível. E, claramente, apresentá-los sem nenhum teste com um consultor cego não era uma opção.

             Foi pelo interesse do professor Allan Santos, na época membro do Departamento Técnico Especializado do instituto, que uma visita extraoficial ao instituto pôde ser feita. Ocorrida no dia 15 de maio, os modelos puderam ser avaliados pela técnica Geni Pinto de Abreu, que gentilmente se disponibilizou para testá-los.

            A consultoria evidenciou a máxima que seria conflagrada anos mais tarde, pela orientação da Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência (ONU): “Nada sobre nós, sem nós” (ONU, 2020). De fato, nenhum resultado plenamente válido surge para a espacialidade cega quando você a concebe sob a espacialidade vidente. Alguns pontos foram especialmente esclarecedores. Evidencio dois: o uso das cores e a leitura das estrelas nas placas das constelações. Concebidos para que os videntes o usassem pela experiência da cegueira, todos os modelos foram pintados de preto, excluindo assim, como a consultoria nos advertiu, qualquer possibilidade eficiente de seu uso por pessoas com baixa visão.

            A representação de estrelas de magnitudes diferentes por alfinetes de tamanhos diferentes, ao contrário do que supúnhamos, também nos foi desencorajada. Isto poderia levar ao entendimento de que estrelas de baixa magnitude necessariamente são maiores do que outras, de forma que o melhor seria a padronização do tamanho dos alfinetes, acrescentando-se a informação sobre o brilho (e cor) da estrela durante a mediação.

            Em compensação aos erros, a reação ao material, sobretudo quanto ao formato das constelações e à descoberta de como os planetas são, nos deu a certeza da continuidade do trabalho. À época, ainda não existia um projeto em astronomia no IBC, papel hoje exercido pelo projeto Universo acessível, do Observatório do Valongo (LORENZ-MARTINS, 2018). Destaco duas pontuações feitas pela técnica: o formato esférico das estrelas lhe era desconhecido e, apesar de já ter assistido a sessões de planetário diversas vezes com a filha, nunca havia entendido os conceitos apresentados na sessão.

            Como previsto, os modelos foram expostos ao público durante a abertura da exposição Luz ao alcance das mãos. Pelos dois meses seguintes, eles foram usados em intervenções quando da presença do público na exposição ou antes das sessões de cúpula. A sessão do projeto só seria apresentada ao público em geral em junho, primeiramente a um grupo de cinco pessoas com deficiência visual e, posteriormente, a duas turmas regulares do Ensino Fundamental, que gerou um interesse acima do esperado pelas crianças e professores.

            Pretendendo expandir as adaptações de atividades, a atividade foi transformada no projeto O essencial é invisível aos olhos, referenciando o livro O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Seu principal fruto foi a ampliação dos modelos de constelações para o número de assentos do planetário, permitindo que uma sessão simplificada pudesse ocorrer totalmente dentro da cúpula, bem como a realização de uma oficina para professores para ensinar a fabricação artesanal desses modelos. Para o futuro, planejamos expandir a fabricação dos modelos, contemplando outros objetos e fenômenos astronômicos, de forma a montarmos outros roteiros de sessões.

Com o uso, os modelos dos planetas apresentaram sinais de desgaste. Contemplado, em 2016, pelo edital comemorativo do Ano Internacional da Luz, com uma parceria entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e o Instituto Tim, os modelos das constelações e dos planetas foram refeitos em acrílico e plástico ABS, em 2017. Em dezembro daquele ano, um grupo de técnicos do IBC veio testá-los. Deste segundo teste, novas questões surgiram, principalmente quanto às legendas e ao peso do material. Estamos buscando recursos e parcerias para saná-las.

Infelizmente, a oferta regular da sessão ainda não foi possível. A crise econômica do estado do Rio de Janeiro, entre 2015 e 2017, impossibilitou o pleno funcionamento do Museu até 2018 e reduziu consideravelmente o quadro de bolsistas da instituição. Desde janeiro de 2018, a sessão integra a programação de férias do museu e atua esporadicamente em substituição às sessões de cúpula. Neste período, novos roteiros foram testados para faixas etárias e durações diferentes. No entanto, a mais profunda (e infeliz) mudança foi a perda do modelo sonoro, com o desligamento da bolsista responsável por executá-lo. Pretendemos restaurá-lo em 2021, acreditando que ele pode ter um papel especialmente importante na manutenção do projeto, especialmente no contexto da retomada do atendimento pós-pandemia, já que o compartilhamento de materiais não deve ser incentivado.

Algumas reflexões

            Para além da experiência descrita no texto, algumas reflexões se tornam necessárias: Quando apenas videntes estão envolvidos na construção de atividades como a descrita, o resultado alcançado é apenas uma descrição dos conceitos, excluindo-se todo os processos (sensoriais, culturais e psíquicos) pelos quais uma pessoa percebe a si e ao universo ao seu redor (MOL, 2007; MOL; STRUHKAMP; SWIERSTRA, 2009).

Assim, apenas traduzimos alguns aspectos do conteúdo astronômico que percebemos racionalmente, não considerando todos os outros que o excedem, próprios da espacialidade cega. E o entendimento de abstrações e a formação de figuras imagéticas (MONDZAIN, 2010) depende intrinsecamente desses processos. Isso ficou evidente com os questionamentos feitos pela consultora cega durante o teste dos modelos. Assim, a presença de cegos na equipe não apenas teria tornado o processo mais eficiente como também mais fiel ao seu objetivo, além de reafirmar a necessidade do protagonismo das pessoas com deficiências em ações a elas destinadas.    

            No contexto do oferecimento da atividade, é necessário que ele deva ser acompanhado de uma acessibilidade atitudinal na instituição, sobretudo em espaços em que a mediação desempenha papel fundamental, como no caso do MCV, onde todas as atividades são mediadas. E ainda que exista a oferta, ela sozinha não garante o engajamento do seu público-alvo. É necessário um processo longo e paciente de conquista de público e divulgação da ação.

            Por último, a pesquisa pelas atividades de referência, em 2015, tomou uma grande parte do tempo de execução do projeto. A literatura disponível era escassa e muitas iniciativas eram divulgadas pelas mídias e por meio de contato pessoal. Apesar de lamentar, entendo perfeitamente a ausência de publicações a respeito, pois esta também é a realidade do nosso projeto: estamos mais voltados à execução das atividades e ao cumprimento das demandas institucionais, restando pouco tempo para compartilhar as experiências. O que demonstra a importância de iniciativas como esta. Sigo na esperança de que muitas outras ações semelhantes sejam descobertas e que todos possamos contribuir para que novas ações possam surgir.

Referências

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