Compartilhe/Share

Sumário interativo

Uma ação educativa sobre acessibilidade no Museu Histórico Nacional

Leonardo Dias de Oliveira e Valéria Regina Abdalla Farias

Resumo: Este capítulo apresenta e discute a ação educativa “Como você vê? #Olhares Possíveis”, que aconteceu no Museu Histórico Nacional (MHN), em 2017, por ocasião da 15ª Semana Nacional de Museus, e teve por objetivo promover a sensibilização para acessibilidade em espaços culturais junto aos visitantes do MHN. Inicialmente, faz uma breve reflexão sobre a ampliação da discussão do tema da acessibilidade nos museus. Em seguida, contextualiza o Museu Histórico Nacional, do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e aborda a acessibilidade nessa instituição.

Também aponta ações de acessibilidade atitudinal no âmbito do Núcleo de Educação do MHN, como a contratação de uma pessoa com deficiência e a formação de equipe;  apresenta as etapas de realização da ação educativa “Como você vê? #Olhares Possíveis”, seus principais desafios e aprendizados; e destaca a importância do envolvimento de diversos núcleos do museu e da realização de parcerias externas, para a concretização da ação. Conclui observando que, por meio da proposta, foi possível ampliar as discussões acerca da acessibilidade e da participação das pessoas com deficiência nos espaços culturais, com vistas a transformar as atitudes de seus visitantes; e que esta ação pode ser replicada em outros espaços que queiram focar em ações de acessibilidade atitudinal.

Introdução

A partir da metade do século XX, profissionais de museu de diversas partes do mundo participaram de encontros para discutir a função social das instituições. Uma característica do século XIX que perdurou na primeira metade do século XX foi a grande preocupação com as coleções dos museus e tudo o que girava em torno das mesmas. Com as discussões sobre sua função social, o museu começa a voltar sua atenção para a sociedade e para os públicos, fazendo com que haja maior preocupação com a comunicação, a educação e o seu caráter lúdico, sem deixar de lado a preservação das coleções (MARTINS, 2017).

É a partir desse contexto que a preocupação com os diversos públicos vem ganhando espaço nos museus e, nos últimos anos, há maior discussão sobre a inclusão de pessoas com deficiência nessas instituições. A mudança de paradigma em relação às pessoas com deficiência, do modelo médico para o modelo social, também tem importante papel nesse contexto.

O modelo médico trata as pessoas como doentes e incapazes, tem o foco na deficiência, que é vista como um problema do indivíduo com deficiência; já o modelo social identifica a sociedade como a responsável por não permitir totalmente o desenvolvimento das pessoas com deficiência, além de focar no indivíduo e não na sua deficiência (MARTINS, 2013).

A legislação brasileira também contribuiu para trazer a pauta para dentro dos museus, especialmente por meio do Estatuto de Museus – Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009 – que, no artigo nº 35, afirma que “os museus caracterizar-se-ão pela acessibilidade universal dos diferentes públicos, de acordo com a legislação vigente” (BRASIL, 2009).

Nesse contexto, dentre as leis sobre o tema, dá-se atenção especial à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146 de 6 de julho de 2015 – que, em seu artigo nº 42, destaca que “a pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).

Pelo acima exposto, entende-se a acessibilidade em museus como “um conjunto de adequações, medidas e atitudes que visam proporcionar bem-estar, acolhimento e acesso à fruição cultural para pessoas com deficiência beneficiando públicos diversos” (LOURENÇO et al., 2016, p. 96). Nesse conceito, no trecho que afirma que a acessibilidade beneficia públicos diversos, entende-se que uma ação que considera as demandas das pessoas com deficiência não será restrita a elas. Por exemplo, as fontes ampliadas dos textos de uma exposição podem ser, primordialmente, direcionadas às pessoas com baixa visão, todavia outros públicos usufruirão da medida, como idosos e crianças.

Atualmente não se discute que os museus precisam estar acessíveis à diversidade humana, no entanto ainda há barreiras que impedem que pessoas com deficiência usufruam destes espaços, como falta de recursos financeiros e de equipe capacitada que consiga propor ações que superem as concepções tradicionais dos museus.

Por isso, o objetivo deste capítulo é apresentar e discutir a proposta educativa “Como você vê? #OlharesPossíveis”, que aconteceu no Museu Histórico Nacional (MHN), durante a 15ª Semana Nacional de Museus de 2017, e que buscou envolver os visitantes nas reflexões sobre acessibilidade em museus.

Museu Histórico Nacional e acessibilidade

O Museu Histórico Nacional, localizado na cidade do Rio de Janeiro, foi criado em 1922 pelo então Presidente Epitácio Pessoa. É vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), uma autarquia que, hoje, faz parte do Ministério do Turismo. A instituição possui um acervo de cerca de 260 mil itens, entre mobiliário, pinturas, armaria, esculturas, indumentária, moedas, medalhas, selos, entre outros. O museu conta com exposições de longa duração sobre a história do Brasil, uma biblioteca e um arquivo histórico.

O tema da acessibilidade aparece em momentos pontuais da história do MHN, mas fica mais evidente a partir das obras de restauração e modernização do conjunto arquitetônico, que aconteceram entre 2003 e 2010, na medida em que se ampliaram seus espaços e foram aprimorados serviços para os visitantes (MHN, 2018), como a instalação de rampas de acesso, escadas rolantes, plataformas elevatórias de acessibilidade, espaços com ampla circulação e adaptação de alturas de vitrines de exposição.

Entre 2016 e 2017, outras reestruturações no espaço físico aconteceram, mas vale destacar as inserções de algumas reproduções táteis de acervo no circuito de exposição (com legendas em braille e fonte ampliada), audioguia com audiodescrição e videoguia em Libras. 

A partir de 2016, por ocasião da recém-atualização do Plano Museológico da instituição, que veio a ser o documento base de gestão do museu entre 2016 e 2019, o Núcleo de Educação, que na época era nomeado por Divisão Educativa, reorganizou-se em três programas de atuação, a saber: Programa de Atendimento ao Público Escolar, Programa de Atendimento ao Público Amplo e Programa de Acessibilidade. Após esse período, uma nova reorganização se fez necessária com a elaboração da Política Educacional e a acessibilidade passou a ser um tema transversal aos novos programas existentes no Núcleo de Educação (MHN, 2019).

Para o início das suas atividades, o Programa de Acessibilidade considerou os tipos de barreiras indicadas por Martins (2017): físicas, sensoriais e atitudinais. As físicas referem-se ao acesso à arquitetura do espaço, à circulação no ambiente e às exposições. As sensoriais dizem respeito ao acesso comunicacional/informacional e aos bens culturais disponíveis ao público. Já as atitudinais retratam a relação que as equipes do museu estabelecem com os públicos com deficiência. Esta última pode ser compreendida como uma barreira invisível, por dizer respeito às “atitudes, pré-julgamentos, pré-conceitos e estigmas sobre as pessoas com deficiência” (SALASAR, 2019, p. 22).

O Núcleo de Educação, naquele momento, optou por embasar suas ações educativas na acessibilidade atitudinal, isto é, na eliminação das barreiras das atitudes em relação às pessoas com deficiência, por entender que estas barreiras ainda não tinham sido alvo de atenção da instituição e não demandariam elevado investimento financeiro.

Inicialmente, é relevante salientar que uma das primeiras ações do MHN pautadas na acessibilidade atitudinal foi a contratação de Leonardo Oliveira, pessoa cega – e um dos autores deste capítulo -, para atuar como educador no desenvolvimento de ações acessíveis do Núcleo de Educação e também para participar das discussões sobre acessibilidade na instituição, de forma geral. Assim, a equipe entendia que o educador poderia partilhar suas experiências de vida enquanto pessoa com deficiência, além de aprender sobre o museu e suas práticas (MARTINS, 2017).

O próximo passo foi investir na formação sobre acessibilidade das equipes que estão em contato direto com os públicos do museu, ou seja, recepcionistas, seguranças e bombeiros. Os encontros, intitulados “Diálogos sobre acessibilidade no MHN”, tiveram como objetivos discutir estereótipos, estigmas e pré-conceitos sobre deficiência e preparar as equipes para acolher e orientar visitantes com deficiência. Educadores e educadoras também participaram das formações, mas devido à possibilidade de discussões sobre o assunto em outras oportunidades, não eram o foco destes encontros. 

Ações pautadas em formações de equipes sobre o tema não são uma novidade e já em 1987, Janice Majewski, ao tratar sobre o tema, indicou que quanto mais se aprende sobre pessoas com deficiência, mais positivas serão as atitudes em relação a elas.

Ao verificar as mudanças nas atitudes dos participantes do encontro em relação às questões da acessibilidade, buscou-se desenvolver uma nova proposta que também trabalhasse a sensibilização para o tema, porém com foco nos visitantes do museu. E assim Programa de Acessibilidade desenvolveu a ação educativa “Como você vê? #OlharesPossíveis”, que será apresentada a seguir.

Como você vê? #OlharesPossíveis 

Realizada durante a 15ª Semana Nacional de Museus – coordenada pelo Ibram – que aconteceu entre 16 e 21 de maio de 2017 e cujo tema foi “Museus e histórias controversas: dizer o indizível em museus”, a proposta teve por objetivo promover a sensibilização para acessibilidade em espaços culturais junto aos visitantes do MHN, e surgiu da vontade da equipe de ampliar as discussões que estavam acontecendo internamente sobre acessibilidade atitudinal em encontros de formação, conforme mencionado anteriormente.

O desafio daquele momento era o de estruturar a ação com poucos recursos financeiros, de modo acessível às pessoas com deficiência, especialmente às pessoas cegas, com baixa visão e às pessoas surdas fluentes em Língua Brasileira de Sinais (Libras), por conta das particularidades da equipe. Vale destacar que o educador Leonardo participou de todas as etapas do processo e também que a equipe passou a contar com uma educadora fluente em Libras. Letícia Julião; tínhamos, assim, a possibilidade de produzir conteúdo nesta língua.

A ação consistiu na mostra de seis objetos do acervo, de difícil identificação visual, mas que puderam ser manipulados por pessoas com deficiência – e com legendas apenas em braille: uma televisão com um vídeo explicativo em Libras; um tablet com leitor de tela; folhetos em braille e com fonte ampliada.

A ideia era provocar uma sensação inicial de desconforto nas pessoas sem deficiência, por não terem acesso ao conteúdo da proposta, para então promover a reflexão sobre acessibilidade em instituições culturais. Dessa vez, não eram as pessoas cegas, com baixa visão e surdas que tinham pouco ou nenhum acesso ao que estava sendo proposto. Em relação aos visitantes com deficiência, a proposta também era refletir sobre acessibilidade, ou sobre a falta dela, nesses espaços. Ainda que tivessem acesso ao conteúdo do material nessa proposta, isso não ocorre no dia-a-dia.

A atividade aconteceu estrategicamente em uma área conhecida como rotunda, pois é próxima à entrada e, também, à saída da exposição de longa duração do MHN, localizada no segundo pavimento do edifício. Algumas pessoas passavam e não paravam, mesmo que educadores e educadoras as convidassem; outras paravam espontaneamente ou aceitavam o convite da equipe para participar da experiência, com cerca de quinze minutos de duração e dividida em três momentos.

No primeiro momento, o visitante era convidado a observar os objetos, as legendas e o vídeo. A maioria dos visitantes, sem deficiência, não compreendia o que eram os objetos, ou o vídeo apresentado em Libras e desconhecia o sistema braille. Alguns perguntavam se podiam tocar nas peças, mas a equipe já tinha a resposta pronta: “apenas pessoas com deficiência visual podem tocar”.

Já no segundo momento, o educador Leonardo fazia o seguinte questionamento: qual é a sensação de estar diante desses objetos sem nenhuma informação sobre eles e sem entender o que é proposto? As respostas dos visitantes denunciavam a angústia de estar em um lugar com objetos expostos, sem possibilidade de toque e sem legenda, de forma que, ao olharem para os mesmos, não era possível compreendê-los, ou o que se pretendia com aquela configuração.

Em seguida, outras questões eram lançadas: e se o museu todo fosse assim, como você se sentiria? E se quase todos os museus do mundo fossem assim? Até que ponto, passar pelos objetos e apenas olhá-los nos basta? Alguns visitantes apenas ouviam as questões, outros ainda demonstravam curiosidade sobre os objetos, mas havia aqueles que deixaram claro com suas palavras que aquela experiência havia proporcionado uma reflexão sobre um assunto, até então desconhecido por eles. Por fim, no terceiro e último momento, a equipe explicava aos presentes o que eram os artigos e entregava-lhes um folheto explicativo sobre a proposta, com referência aos objetos apresentados.

Ao final da semana, cerca de 400 pessoas participaram da ação educativa.  Do total, em torno de 15 visitantes adultos tinham deficiência visual e agendaram a participação previamente via Subsecretaria da Pessoa com Deficiência, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. Os demais visitantes eram crianças, jovens e adultos sem deficiência e que não agendaram a participação na atividade. Tanto com as pessoas com e sem deficiência foi possível promover um momento de reflexão sobre a falta de acessibilidade nos espaços culturais e sobre os estigmas presentes na sociedade, em relação às pessoas com deficiência.

Foi uma proposta complexa, por envolver diversos setores do MHN, além do Núcleo de Educação: a então Divisão de Museografia participou da preparação e montagem da mostra; a Divisão de Reserva Técnica selecionou e preparou os objetos do acervo; e a Assessoria de Comunicação desenvolveu o material de divulgação da ação. O envolvimento das distintas áreas foi bastante significativo para que o tema extrapolasse o Núcleo de Educação, ainda na esfera institucional.

Contudo, com  poucos recursos financeiros, como seria possível prover o mínimo de acessibilidade? Era necessário elaborar material em braille e produzir um vídeo em Libras. Sem a verba suficiente para o vídeo, a própria equipe do Núcleo de Educação gravou e editou o material, o que não foi tarefa fácil, já que era a primeira vez que se produzia um vídeo em Libras.  Já para a impressão do material em braille, partiu-se para a busca de parceria externas, e a então Subsecretaria da Pessoa com Deficiência, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, prontamente atendeu ao pedido do MHN, por meio de seu Núcleo de Tecnologia Assistiva. Assim, foi possível desenvolver um trabalho a muitas mãos.

Por conta da participação ativa de Leonardo em todas as etapas, a proposta educativa “Como você vê? #OlharesPossíveis” trouxe à tona, ainda, a discussão sobre a importância do protagonismo das pessoas com deficiência nas ações que tratam de acessibilidade. O assunto foi abordado junto aos visitantes e muitos não tinham refletido sobre o tema, mas reconheceram que o protagonismo é essencial para o sucesso das ações sobre acessibilidade.

Considerações finais

Por meio da experiência da ação educativa “Como você vê? #OlharesPossíveis”, o MHN procurou contribuir para a ampliação das discussões acerca da acessibilidade e da participação das pessoas com deficiência nos espaços culturais, com vistas a transformar as atitudes de seus visitantes. Pode-se dizer que investir em acessibilidade atitudinal é um compromisso que toda instituição museológica precisa assumir, tanto em ações voltadas para o público interno quanto externo. Desta forma, buscou-se trazer uma proposta possível de ser replicada em outras instituições, com as adaptações necessárias a cada realidade. Acredita-se que é uma ideia relativamente simples, porém com potencial para transformar as pessoas que passam pela experiência.

Referências

BRASIL. Lei nº 11.904, de 14 de jan. de 2009. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 15 jan. 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm. Acesso em: 30 mai. 2020.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de jul. de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 6 jul. 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 30 mai. 2020.

LOURENÇO, M. et al. Estudos exploratórios sobre o acesso aos museus da Universidade Federal de São Paulo. Museologia e Patrimônio – Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio. Vol. 9, n. 1. Rio de Janeiro: Unirio/ MAST, 2016. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/issue/view/23/showToc. Acesso em: 10 mai. 2020.

MAJEWSKI, J. Part of your general public is disabled: a handbook for guides in museum, zoos, and historic houses. Washington, DC: Smithsonian Institution, 1987.

MARTINS, P. R. A inclusão social tem influência nas práticas museais? O acesso dos públicos com deficiência. Midas: Museus e Estudos interdisciplinares. Portugal, v.2, 2013. Disponível em:  https://journals.openedition.org/midas/246. Acesso em: 30 mai. 2020.

MARTINS, P. R. Museus (In)Capacitantes: Deficiência, Acessibilidades e Inclusão em Museus de Arte. Vol. 7. Coleção Estudos de Museus. Casal de Cambra: Caleidoscópio e Direção-Geral do Patrimônio Cultural, 2017.

MHN. Plano Museológico do Museu Histórico Nacional 2016-2019. Rio de Janeiro, RJ: Museu Histórico Nacional, 2018.

MHN. Programa Educativo e Cultural: a Política Educacional do MHN. Rio de Janeiro: MHN, 2019

SALASAR, D. N. Um museu para todos: manual para programas de acessibilidade. Pelotas: Ed. da UFPel, 2019. Disponível em: file:///Users/VJ/Downloads/Um%20museu%20para%20todos.%20manual%20para%20programas%20de%20acessibilidade%20(3).pdf. Acesso em: 27 mai. 2020.

Share this Page