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Sumário interativo

Museu e acessibilidade à arte: as experiências do Museu de Arte da UFC (Mauc)

Helem Cristina Ribeiro de Oliveira Correia, Maria Carlizeth da Silva Campos e Saulo Moreno Rocha

Resumo: Este capítulo apresenta experiências de acessibilidade à arte e ao patrimônio desenvolvidas no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc/UFC), museu universitário localizado em Fortaleza, Ceará. A partir das dinâmicas internas de planejamento e gestão, em sintonia com os marcos legais e com as demandas públicas por acessibilidade, o museu vem implementando uma série de ações com base na transformação da sua cultura institucional, com a incorporação da acessibilidade universal como uma pauta transversal. Neste processo, destaca-se o papel da qualificação das equipes, da inovação e da criatividade diante dos desafios orçamentários e da importância das parcerias intra e interinstitucionais para construir museus cada vez mais acessíveis e plurais.

O Museu de Arte da UFC

Criado em 1961, o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc/UFC), primeiro museu universitário dedicado às artes no Ceará, configura-se como uma instituição de referência para a história da arte e da cultura cearense e brasileira. Está situado em Fortaleza, no bairro universitário do Benfica. Realiza um trabalho extensionista, sendo instância de diálogo constante entre a universidade e a sociedade por meio de ações de preservação, comunicação, pesquisa e educação (SIQUEIRA et al., 2019).

O seu acervo conta atualmente com mais de 7 mil obras de arte, percorrendo diferentes momentos e facetas da produção artística cearense, brasileira e internacional, com destaque para as coleções de cultura popular, arte moderna e contemporânea. Possui em sua estrutura a Biblioteca Floriano Teixeira, especializada em artes, patrimônio e museologia, e o Arquivo Histórico Jean Pierre Chabloz, que salvaguarda preciosa documentação institucional e a coleção Batalha da Borracha, de Chabloz, reconhecida como memória do mundo pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

A exposição de longa duração possui sala dedicada aos artistas Aldemir Martins, Antônio Bandeira, Chico da Silva, Descartes Gadelha e Raimundo Cela. A Sala de Cultura Popular expõe obras de Maria do Socorro Cândido, João Pedro do Juazeiro, Joaquim Mulato, Chico Santeiro, José Caboclo, Mestre Noza, Mestre Vitalino, Walderêdo Gonçalves, Zé Bezerra, entre outros. Periodicamente, são realizadas exposições de curta e média duração, resultado da parceria do Mauc com artistas, coletivos artísticos, unidades administrativas e acadêmicas da universidade, e outras iniciativas.

No campo da inclusão, ações de acessibilidade vêm sendo pensadas e inseridas nas políticas de gestão do Mauc, elaboradas com base em dispositivos legais, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), no Plano de Desenvolvimento Institucional da UFC e no Estatuto de Museus (Lei 11.904/2009), bem como inspiradas em experiências de outras instituições.

Neste capítulo, apresentaremos algumas das ações que temos desenvolvido. Dos pequenos gestos aos projetos mais ambiciosos, as transformações são visíveis e têm produzido importantes efeitos e ressonâncias nos propósitos de ampliar e democratizar o acesso ao museu, à memória, à arte e ao patrimônio. São desafios enormes enfrentados diariamente, decorrentes das dificuldades orçamentárias, de equipe e de materiais. A principal estratégia desenhada pela instituição para driblar essas barreiras tem sido a transformação cultural, incutindo em todos os setores a preocupação com a pauta da acessibilidade a partir de uma inserção estrutural do tema, transversalizando agentes, setores e propostas. Além disso, tem sido extremamente relevante a estruturação de parcerias, que tem permitido avançar em inúmeras áreas.

Gestão e implementação de políticas de acessibilidade no Mauc

A constituição brasileira, em seu artigo 215, diz que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional […]” (BRASIL, 1988). Com a ampliação dos debates acerca da acessibilidade, estas questões estão cada vez mais na pauta de instituições culturais. 

O primeiro registro localizado sobre ações em torno desta questão no Museu de Arte da UFC foi a exposição Olho vivo, do fotógrafo Pedro Humberto, no ano de 1999, cuja proposta era a reflexão sobre as pessoas com deficiência visual no sentido de demonstrar sua capacidade de independência a partir do acesso à educação especializada. Posteriormente, em 2013, o Mauc recebeu um grupo de pessoas com deficiência visual, as quais puderam participar de uma mediação que permitiu o toque nas obras. Não obstante a importância destas ações, é preciso dizer que elas não se realizaram dentro de uma política de gestão que tinha objetivos no âmbito da acessibilidade. 

A acessibilidade foi incorporada à pauta da gestão do Mauc a partir de 2018, quando a direção do museu passou a considerar o desenvolvimento de políticas de acessibilidade como um aspecto importante do planejamento interno, alinhadas com o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) da UFC.

Assim, houve um incentivo para que os colaboradores buscassem participar de capacitações que tratassem deste tema. O curso “Acessibilidade a museus e espaços culturais: atendimento à diversidade”, promovido pelo Museu da Cultura Cearense (MCC), cursado pela administradora do museu, teve um importante papel na implementação das primeiras medidas, tais como a utilização das descrições das imagens nas redes sociais e o incentivo à disponibilização de obras táteis em exposições de curta duração. Cabe citar também que o museólogo e a técnica em arquivo do museu participaram de capacitações em Libras e de cursos sobre acessibilidade comunicacional.

Apesar de existirem muitos recursos tecnológicos que possibilitam melhor acesso por parte das pessoas com deficiência, foi preciso também compreendermos a relação entre o cenário ideal e o cenário possível, considerando a escassez de recursos financeiros, a qual não atinge apenas museus universitários, mas também toda a cadeia produtiva da cultura. Nesse contexto, compreendemos que a acessibilidade atitudinal era primordial para o acolhimento do público.

A chegada da servidora Maria Carlizeth da Silva Campos, assistente em administração e pessoa com deficiência visual, foi de grande valor, visto que contribuiu com o processo de modificação da cultura institucional, de reflexão sobre projetos e programas, além de participar com a validação das ações propostas, uma vez que o que se promove em acessibilidade deve sempre contar com uma consultoria, e a valorização do protagonismo das pessoas com deficiência que deve ser um dos focos das proposições institucionais. 

Início da descrição: Com a máquina pronta para funcionar, Carlizeth dá os comandos para a impressão por meio de um painel acessível. A máquina encontra-se dentro de uma caixa de madeira acústica revestida por uma esponja verde-escura semelhante a uma caixa de ovos. Folhas em branco foram colocadas acima do painel. Quando a impressão de cada folha é concluída, é armazenada automaticamente na parte inferior da caixa acústica da impressora. Carlizeth é uma jovem senhora de baixa estatura, pele branca e cabelos cacheados, amarrados para trás. Integra a equipe do Mauc desde novembro de 2018 e é uma das autoras deste artigo. Usa uma blusa verde-escura. Fim da descrição.
Figura 1: Maria Carlizeth Campos operando máquina de impressão em braille, na Secretaria de Acessibilidade da UFC, em 2019. Fonte: Acervo de Saulo Moreno Rocha, 2019.

Outra importante medida foi a implementação do Projeto Educativo do Mauc, por meio do qual foi instituído o Núcleo Educativo, que possibilitou a chegada da bolsista do curso de Libras Jully Dionízio. Esta ação foi bastante relevante, uma vez que oportunizou não apenas a mediação ao público surdo, como também permitiu aos grupos que receberam o atendimento o sentimento de representatividade e pertencimento ao espaço do museu.

Faz-se necessário dizer que a busca por tornar um museu ou qualquer outro espaço cultural acessível se faz com desafios diários que só podem ser transpostos com uma gestão que compreenda e apoie tais políticas de acessibilidade. Isto porque é essencial que as ações estejam no planejamento e passem a constar nos objetivos da instituição para que sejam de fato implementadas.

Projetos e experiências em acessibilidade e inclusão

Além dos aspectos já apontados anteriormente, o Mauc vem implantando uma política de acessibilidade e inclusão a partir de programas e projetos, muitos deles realizados a partir de parcerias inter e intrainstitucionais. A seguir, destacamos alguns deles.

Núcleo de Comunicação: acessibilidade comunicacional

Instituído em 2018, o Núcleo de Comunicação tem contribuído significativamente para a ampliação do acesso ao museu. Com perfis em diferentes redes sociais, o Mauc vem paulatinamente expandindo o seu alcance e se comunicando mais e melhor com os seus públicos. A incorporação da descrição de imagens por meio de hashtags, como #pracegover, #descreviparavocê e #paratodosverem, tem sido uma constante em todas as publicações. Assim, garantimos que as postagens sejam acessíveis para pessoas cegas e de baixa visão. Além disso, no período pandêmico de covid-19, que ainda atravessamos, o museu realizou algumas exposições virtuais e a descrição das imagens se fez presente.

Em parceria com a Secretaria de Acessibilidade (UFC Inclui), tem sido possível a incorporação da janela de Libras em muitas das produções audiovisuais. Quando não é possível a janela, outro recurso utilizado tem sido a legendagem. O site do museu também é acessível e está em conformidade com uma política mais ampla de portais acessíveis da universidade.

Núcleo Educativo

Desde o desenho do seu projeto, o Núcleo Educativo do Mauc (NEMauc) vem se pautando por um olhar atento à acessibilidade e à inclusão. A sua criação ocorreu em 2019 e sua implantação contou com a atuação da então estudante Jully Araújo Dionizio, do curso de Letras Libras da UFC e pessoa surda. Os impactos da atuação da educadora foram visíveis na incorporação do Mauc ao circuito cultural da comunidade surda de Fortaleza, isto a partir de uma divulgação constante da realização de visitas mediadas em Libras. Todo o processo se revestiu de grande aprendizado, tanto para a equipe de servidores como para os bolsistas que atuaram na instituição em 2019.

Além das visitas mediadas, Jully ofertou um curso de “Introdução à Libras”, como um produto de sua atuação, contribuindo para despertar na equipe o desejo do aprendizado da língua e de sua relevância para a comunicação e o acolhimento qualificado de diferentes perfis de público. Desde sua criação, o NEMauc vem articulando ações que visam ampliar os públicos da instituição, contando com a participação atuante de bolsistas e voluntários de diferentes cursos e universidades, ampliando o acesso ao valioso acervo do Mauc aos mais variados públicos.

Outra ação que merece destaque é o Programa Férias no Mauc, que caminha para a sua quarta edição, em que uma programação ampla e diversificada, construída colaborativamente, tem contribuído para o fortalecimento das relações do museu e da universidade com a sociedade. Novas perspectivas de acessibilidade comunicacional vêm sendo pensadas e implementadas para tornar o perfil do NEMauc no Instagram (@educativomauc), criado recentemente, cada vez mais inclusivo.

Exposições de arte: tocar, ouvir, sentir

Um dos grandes desafios para os museus é acessibilizar as suas exposições. O tabu do toque, instituído principalmente com o objetivo de garantir a conservação das obras, limita o acesso de amplos quantitativos de pessoas aos bens culturais. Instituir recursos de acessibilidade, portanto, deve ser uma constante para equipes de museólogos e demais profissionais da área. Em parceria com artistas, o Mauc vem conseguindo, aos poucos, ofertar visitas às exposições em que a experiência multissensorial seja possível.

A primeira experiência nesse sentido ocorreu na exposição À flor da pele: a pintura visionária de Stênio Burgos, do artista cearense Stênio Burgos e com curadoria do professor Gilmar de Carvalho, realizada entre março e maio de 2019. O artista disponibilizou obras originais de sua autoria para que pessoas com deficiência visual pudessem tocá-las. O público com deficiência visual também teve acesso a textos em braille com a audiodescrição das peças táteis e demais informações sobre a exposição.

Início da descrição: Sobre uma mesa com tampo de vidro, há duas obras táteis e um texto impresso em braille. Dois visitantes com deficiência visual apreciam essas obras e textos através do tato. Os traços e linhas em alto relevo definem a arte com que o autor da obra produziu a peça. Os visitantes não aparecem de corpo inteiro na imagem. Vê-se apenas seus braços e parte da roupa que estão vestindo. Ao fundo, pode-se ver uma terceira pessoa, com blusa estampada, e a entrada do Mauc, com parte de uma mesa que fica na recepção. Uma bengala na cor prata está encostada em uma grade de metal preta próximo à entrada. Fim da descrição.
Figura 2: Experiência de acesso do público cego às pinturas do artista Stênio Burgos, em 2019. Fonte: Acervo Museu de Arte da UFC, 2019.

Outras exposições sob essa mesma dinâmica foram realizadas, graças à parceria com outros artistas. Na exposição Arte têxtil, de Andréa Dall’Olio, a artista plástica disponibilizou uma peça de sua autoria, produzida especialmente para o público cego e com baixa visão. Na exposição Panorâmica gráfica: do individual ao coletivo, de Gérson Ipirajá e Silvano Thomaz, matrizes de xilogravura e linoleogravura de autoria desses artistas foram disponibilizadas para o toque. Matrizes de xilogravura do artista Francisco Bandeira também foram disponibilizadas ao toque na exposição Célebres cordéis: oralidade e poesia.

Na exposição Espedito Seleiro: 80 anos de couro e alma, o artista também disponibilizou algumas de suas peças ao toque. Na exposição Reinventando a marchetaria, de Sílvio Rabelo, a série Via sacra ficou à disposição do público com deficiência visual na íntegra.

A exposição multissensorial O grande veleiro: Arthur Bispo do Rosário, realizada em parceria com o Sesc, além de proporcionar a possibilidade do toque a diversos recursos expográficos, configurou-se como um importante espaço para reflexão sobre saúde mental, neurodiversidade e direito à arte. Pacientes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) visitaram a exposição. A interação entre a realidade vivida por eles e a temática proposta pela exposição era bem nítida, ampliando as reflexões sobre a importância dos museus como espaço de valorização de grupos ainda pouco contemplados.

Parceria com a Secretaria de Acessibilidade e o Grupo de Tecnologias Assistivas (GTA)

A Secretaria de Acessibilidade da UFC (UFC Inclui) é o órgão interno responsável pela implementação de políticas de acessibilidade e inclusão na universidade. Criada em 2010, vem mantendo a prestação de serviços importantes e também tem buscado estimular um debate qualificado sobre as transformações necessárias na instituição. O Mauc mantém parceria constante com a secretaria, expressa pelo apoio e suporte em diversas ações: presença de intérpretes de Libras em eventos (presenciais e on-line); inserção de janela de Libras em vídeos; impressão de textos em braille (com o suporte da servidora Maria Carlizeth Campos); oferta de cursos de capacitação para a equipe de servidores(as), dentre outras.

Integramos também, junto com a UFC Inclui e inúmeros outros setores e servidores da universidade, o Grupo de Tecnologias Assistivas (GTA), instituído em 2019. O GTA objetiva reunir projetos, programas e pessoas que atuam com acessibilidade, com vistas ao fortalecimento coletivo e à proposição de projetos que fortaleçam a pauta nos diversos âmbitos da instituição. Destaca-se a presença de um subgrupo dedicado à arte, o que permitiu um encontro inédito entre diferentes iniciativas e agentes atuantes na UFC em prol da ampliação do impacto das ações e do planejamento coletivo de novos passos.

Mauc tátil: parceria com os projetos Fotografia tátil e Design computacional

Os projetos Fotografia tátil e Design computacional, ambos coordenados pelo professor doutor Roberto César Cavalcante Vieira, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Design da UFC, têm proporcionado o uso da tecnologia a favor da inclusão e da ampliação do acesso à arte. Em diferentes linhas de ação, o Mauc tem sido beneficiado pela parceria, a começar pela transformação de fotografias de obras de arte do nosso acervo em peças táteis, como as do artista Aldemir Martins.

O museu também vem sendo espaço para experimentos, como o realizado em edição do Música no Mauc – Grupo de Violoncelos da UFC, em que um telão projetou no espaço expositivo obras do artista Stênio Burgos, que sofriam transformações a partir da captação do som e sua tradução na movimentação dos padrões de cores e formas. O experimento era voltado para a comunidade surda e buscou servir de recurso de fruição estética e artística combinando artes visuais, música e design computacional.

Outra parceria vem sendo estabelecida com o projeto Cores da alma, do Instituto de Cegos do Ceará, coordenado pelo professor Dias Brasil[1]. Trata-se de um projeto de ensino de artes para pessoas com deficiência visual, com o qual o Mauc vem estabelecendo diálogos, traduzidos em uma visita ao projeto e exposição realizada pelos artistas, que se intitulam “invisuais”, e também na visita destes ao museu, momento em que conheceram as exposições e tiveram acesso em primeira mão às peças táteis do acervo.

Início da descrição: Sentados em volta de uma mesa protegida por papel kraft marrom, quatro integrantes do projeto Cores da alma apreciam algumas peças táteis. Três dos integrantes, dois homens e uma mulher, tocam peças em madeira. Em pé, Graciele Siqueira, museóloga e diretora do Mauc, conversa com os quatro visitantes. Fim da descrição.
Figura 3: Visita dos artistas integrantes do projeto Cores da alma ao Mauc, em 2019. Fonte: Acervo Museu de Arte da UFC, 2019.

Em 2019, o professor Roberto desenvolveu em parceria com o Museu da Fotografia Fortaleza (MFF) um curso de fotografia para pessoas cegas. A servidora do Mauc, Carlizeth Campos, participou ativamente e tem contribuído com todas as iniciativas desenvolvidas. Ainda em parceria com o MFF, o Mauc realizou o seminário interinstitucional “Por dentro e para além dos museus: arte, educação e patrimônio”, durante a 13ª Primavera dos Museus, que contou na programação com o painel “Acessibilidade e inclusão: democratização do acesso e fruição do patrimônio cultural”.

Na oportunidade, foram apresentadas e discutidas as seguintes iniciativas: Programa de Acessibilidade do MFF (com Keli Pereira e Larissa Sales); projeto Acesso: ações inclusivas no campo museológico (com Márcia Bitu Moreno, Lara Lima e Carlos Viana); Design computacional e experiências com arte acessível (com Roberto Vieira) e Experiências de acessibilidade do Mauc (Maria Carlizeth Campos e Saulo Moreno Rocha). A mediação foi realizada pela professora e pedagoga Gerda Holanda, do Memorial da UFC, que se dedica a estudar o tema da acessibilidade cultural.

O momento de encontro foi importante para conhecermos e valorizarmos diferentes iniciativas institucionais inspiradoras e que poderiam se aliar para promover ainda mais o acesso à cultura nos museus.

Bordados táteis: parceria com os grupos Iluminuras e Entrelaçadas

Em 2019, o Mauc acolheu duas exposições de bordados Iluminuras: literatura e bordado, do projeto de extensão de mesmo nome, e Nunca se viaja em vão se o destino é Fortaleza, do grupo de bordado Entrelaçadas. Ambas tinham como foco a valorização artística do bordado, apesar de diferenças nas propostas e no funcionamento dos grupos.

O Iluminuras é um projeto de extensão da UFC, ligado ao Acervo do Escritor Cearense e à Biblioteca de Ciências Humanas. Propõe o estudo e debate literário e o uso do bordado como linguagem artística para expressar processos de leitura e construção coletiva de reflexões. O Entrelaçadas é um grupo de bordadeiras que surgiu a partir da reunião de interessadas em bordar e que anualmente elege um tema de trabalho para todo o grupo. Em 2018, escolheram Fortaleza e produziram incríveis bordados sobre a cidade, com destaque para pontos turísticos e bens edificados históricos.

Do diálogo com as bordadeiras e iluminuristas, surgiu a ideia de bordar a fachada do Mauc, com o objetivo de utilizar a peça como recurso de acessibilidade para pessoas cegas. A operacionalização da proposta foi possível a partir do apoio de Expedita Ricarte (Iluminuras) e Vanda          Fernandes (Entrelaçadas), que abraçaram a ideia, e dos estudantes Aimê Amaral, Caio Katsuo e Raquel Fonseca, do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC que, com a orientação da professora Aléxia Brasil, produziram os desenhos do prédio do museu que serviram de parâmetro para o bordado.

O projeto tem contado desde o início com a consultoria constante de Carlizeth Campos, que tem apoiado na tomada de decisão sobre os melhores pontos a serem aplicados para tornar as peças bons recursos de acessibilidade, bem como das integrantes dos grupos.

Início da descrição: Em um tecido marrom-claro, a fachada do Mauc é desenhada aos poucos por meio da técnica do bordado. Na parte superior do tecido, pontos em azul-claro, azul-escuro e azul-bebê demarcam as diversas faces da edificação. Da esquerda para a direita, um espaço vazado, demarcado pelos pontos, define a lateral do prédio. Na parte central, quase completos, estão bordados o letreiro com o nome do Mauc e o brasão da UFC. Logo abaixo, algumas plantas foram bordadas nas cores verde e marrom. A seguir, bordado com linhas nas cores azul e branca, pode-se ver o painel da lateral da fachada do Mauc. Linhas traçadas por lápis indicam os trechos da fachada que serão bordados posteriormente. Pequenos quadrados demarcados pelo bordado na parte inferior do tecido lembram uma cerca. Pontos marrons que preenchem esta estrutura lembram pedrinhas ou grãos. No canto esquerdo, tufos de linhas coloridas com vários tons de verde amarelo e vermelho lembram um arbusto. Fim da descrição.
Figura 4: Bordado tátil da fachada do Mauc. Fonte: Acervo de Saulo Moreno Rocha, 2019.

Audiodescrição de obras de arte

Em outubro de 2019, o Mauc instituiu um programa de voluntariado, inicialmente para atuação em seu Núcleo Educativo e, posteriormente, ampliado para o de Comunicação. Foi através deste programa que o Museu passou a contar com inúmeros(as) colaboradores da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).

Estudantes de diferentes cursos passaram a atuar em ações institucionais e foi através desse mecanismo que recebemos a estudante Stefanie Viana dos Santos. Ela propôs à instituição a construção de audiodescrição de uma obra de arte, visto a ausência de tal recurso de acessibilidade nas exposições. A partir daí, ela também nos apresentou o trabalho desenvolvido pela professora Marisa Aderaldo, da UECE, especialista em audiodescrição, com inúmeros trabalhos e contribuições ao tema no Brasil.

Pouco tempo depois, outra colaboradora voluntária, Fernanda Carneiro dos Santos, do curso de Artes Visuais do IFCE, viabilizou o contato com Alexandra Seoane, Georgia Tath e Isabel Soares, vinculadas ao Grupo Lead – Tradução Audiovisual Acessível: Legendagem e Audiodescrição, da UECE. A partir desses encontros valiosos, foram sendo tecidos diálogos, que se adensaram com o encontro das colegas da UECE, especialmente da professora Vera Lúcia Santiago (líder do Lead), com o trabalho desenvolvido pelo professor Roberto César Vieira. Santiago é uma das maiores especialistas do país em audiodescrição e legendagem e vem há muitos anos desenvolvendo pesquisas e aplicações voltadas ao tema.

Com o objetivo de colaborar com a acessibilização de acervos artísticos, foi estabelecida uma parceria entre o Lead, o Mauc, os projetos Fotografia tátil e Design computacional e o Museu da Fotografia Fortaleza. Um curso de formação de audiodescritores e consultores de audiodescrição foi montado pelo Lead e ofertado por meio de plataforma digital, entre os meses de junho e dezembro de 2020. Participaram da iniciativa servidores, colaboradores e pessoas com deficiência visual. Além da formação teórica, os participantes têm construído audiodescrições que, em breve, serão disponibilizadas. No Mauc, a primeira sala que está sendo audiodescrita é a do artista Aldemir Martins e esperamos alcançar outros artistas e espaços da exposição de longa duração. O trabalho tem sido desenvolvido com base na harmonização entre diferentes recursos de acessibilidade: audiodescrição, peças táteis e sistema de rastreamento (CAVALCANTE VIEIRA et al., 2020).

Considerações finais

A construção de instituições universalmente acessíveis é um dos grandes desafios, não somente dos museus, mas em todos os âmbitos da vida social. Garantir oportunidades iguais de acesso, fruição e vivência dos bens culturais é um direito conquistado, apesar de ainda pouco efetivado, após muitas lutas e mobilizações, especialmente das pessoas com deficiência. Contudo, pensar em instituições acessíveis significa romper com toda uma construção sociocultural que exclui, que silencia e impede que pessoas, em sua diversidade de existências, possam ter direitos e garantias para uma vida plena.

Nos museus, o debate ainda é muito incipiente e só nos últimos anos passou a ocupar a agenda de pesquisas e de aplicação da Museologia e de áreas afins. As transformações, mesmo que lentas, começam a despontar e novas formas de fazer e viver museu e patrimônio estão cada vez mais em pauta. As políticas públicas deverão adensar esse movimento, contribuindo para o fortalecimento das instituições e para as necessárias transformações. Destacamos, contudo, que o primeiro passo é a mudança de atitude e a incorporação das perspectivas acessíveis e inclusivas como questões centrais do fazer museológico contemporâneo.

Diante dos inúmeros desafios que se apresentam às instituições, urge incorporar a acessibilidade universal como um tema transversal e como pauta prioritária no planejamento e também na formação das equipes. A construção de um mundo melhor para todas e todos passa por nós e pela responsabilidade coletiva com a garantia dos direitos fundamentais de todas as pessoas, que incluem os direitos à educação, à saúde, à cultura e ao patrimônio.

Caminhos importantes só poderão ser construídos através do diálogo, da escuta e por meio de parcerias, momentos em que aprendemos uns com os outros e avançamos coletivamente. Esperamos inspirar, assim como temos sido inspirados(as) por inúmeros movimentos que lutam e atuam sistematicamente para construir novos museus, em que todas, todos e todes sejam bem acolhidos e possam fruir arte, cultura e ciência.

Referências

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1986. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.

BRASIL, 2009. Lei 11.904, de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11904.htm. Acesso em: 5 fev. 2021.

BRASIL, 2015. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015.Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 5 fev. 2021.

CAVALCANTE VIEIRA, Roberto César; SANTIAGO ARAÚJO, Vera Lúcia; ABUD, Janaína Vieira Taillade; OLIVEIRA, Georgia Tath Lima de; ROCHA, Saulo Moreno; SIQUEIRA, Graciele Karine; CAMPOS, Maria Carlizeth da Silva. Museu e recursos táteis para pessoas cegas: acessibilização da Sala Aldemir Martins no Museu de Arte da UFC (Mauc), 2020. Inédito.

SIQUEIRA, Graciele Karine; CORREIA, Helem Cristina Ribeiro de Oliveira; COSTA, Pedro Eymar Barbosa. Um museu universitário de arte no Ceará – história, coleções e atuação. Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará – Mauc/UFC. Revista TOM. Cultura, Arte e reflexão. v. 5, n. 9, p. 153-163, 2019. Disponível em: https://issuu.com/tom_ufpr/docs/tom_9_museus_e_cole__es_final. Acesso em: 2 out. 2020.


[1] Integram o projeto as(os) seguintes artistas: Adriana Vasconcelos Loiola (Ariel), Ana Lúcia Santana (Sant’Ana), Ana Paula Gomes Costa Sousa (Souza Ana), Francisco Targino da Silva (Kiko), Luiza Leite Andriola (Andriola) e José de Anchieta Arruda de Carvalho (Anchieta de Carvalho).

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