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Sumário interativo

Transtorno do Espectro Autista: Autismos nos museus

Priscila Romero

Resumo: O Autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta milhares de pessoas, dificultando a comunicação, a socialização, a aprendizagem dos indivíduos, dentre outras questões. Instituições culturais são de extrema importância no desenvolvimento de pessoas com deficiência, mas, para recebê-los adequadamente, devemos conhecer o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e saber como trabalhar com as mesmas; ­ sendo esse, portanto, o tema deste capítulo.

Breve histórico

A palavra autismo é originária do grego autós, significando “de si mesmo”. Este termo foi empregado pela primeira vez pelo psiquiatra suíço Eugene Bleuler, em 1911.  Bleuler tentou descrever tal acometimento como uma “fuga da realidade e o retraimento interior dos pacientes acometidos de esquizofrenia” (CUNHA, 2012, p. 20).

Léo Kanner, psiquiatra austríaco, naturalizado americano, foi o primeiro a publicar sobre tal transtorno, em 1943; uma vez que pôde observar cerca de onze crianças internadas em uma instituição, com idades entre dois e onze anos, sendo três meninas e oito meninos. Essas crianças lhe chamaram a atenção pois apresentavam comportamentos diferentes de tantos outros já relatados na literatura psiquiátrica existente à época. Dessa forma, Kanner observou, dentre outras características, uma “incapacidade de se relacionarem de maneira normal com pessoas e situações, desde o princípio de suas vidas” (BRASIL, 2013, p. 17). O estudo, no qual descreveu todas as suas análises, gerou um artigo intitulado “Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo” (MERCADANTE, 2009, p. 35).

De acordo com o autor, “Tais crianças estavam sempre distanciadas das outras e pareciam manter uma relação não funcional com os objetos, inclusive brinquedos” (SUPLINO, 2009, p.19). Kanner relatou, então, o que hoje conhecemos como a tríade sintomatológica: inabilidade no relacionamento interpessoal, atrasos na aquisição da fala e dificuldades motoras.

Antes da divulgação dos estudos de Kanner, os conceitos de Transtorno do Espectro Autístico confundiam-se com Esquizofrenia e Psicose Infantil (BRASIL, 2013, p. 17). Em 1949, o autor referiu-se ao mesmo quadro como uma síndrome, denominando-a de Autismo Infantil Precoce. Em seus estudos, apresentou outras características comuns à maioria das crianças com o transtorno autístico: “sérias dificuldades de contato com as pessoas; ideia fixa em manter os objetos e as situações sem variá-los; fisionomia inteligente; alterações na linguagem do tipo inversão pronominal, neologismos e metáforas” (RODRIGUES; SPENCER, 2010, p.18). Em 1950, apresentou mais 38 casos semelhantes no seu “Tratado de Psiquiatria Infantil”.

Kanner, então, decidiu separar o Transtorno Autístico da doença mental conhecida como Esquizofrenia Infantil, mantendo ambas as perturbações no grupo das psicoses infantis. Por fim, ressaltou a necessidade de se perceber o Autismo como sintoma primário, afastando o mesmo de outros quadros orgânicos e psíquicos.

Enquanto Kanner se aprofundava em Autismo, o médico austríaco Hans Asperger observava crianças com um quadro semelhante. Tais indivíduos observados mantinham duas características diferentes das apresentadas por Kanner: a presença da intelectualidade e uma maior capacidade de comunicação. Asperger intitulou sua pesquisa como “Psicopatia Autista” (CUNHA, 2012, p. 22). Anos mais tarde, originou-se outra nomenclatura para o quadro: Síndrome de Asperger.

Em 1956, Léo Kanner, em parceria com o psiquiatra infantil Eisenberg, constatou que a síndrome autística poderia aparecer depois de algum tempo e de um desenvolvimento, aparentemente, normal da criança. Na mesma época, o psiquiatra Eugene Bleuler, que também estudou o Autismo, contrariou um dos aspectos estabelecidos por Kanner, dividindo a opinião da comunidade científica: Kanner declarou que todos os indivíduos com o Transtorno do Autismo não possuíam a aptidão para o relacionamento social e nem para reagir perante situações da vida, dessa forma, não teriam imaginação. Bleuler, ao contrário, afirmou que os mesmos indivíduos sofriam com a ausência da realidade, pois penetravam em seu mundo particular, ignorando o seu redor: o autista mergulharia no seu interior, em sua própria e fecunda imaginação. (RODRIGUES; SPENCER, 2010, p.19).

Passaram-se anos e diversos conceitos sobre a causa do Autismo foram mencionados. Nas décadas de 1950-1960, Bruno Bettelheim, psicólogo austríaco, difundiu a ideia de Léo Kanner das “mães-geladeira”, a qual apontava que o autismo advinha da “indiferença emocional das mães”, culpabilizando-as (MERCADANTE, 2009, p. 36). Mais tarde, pensou-se ser um transtorno orgânico, consequência de uma doença do sistema nervoso central; uma patologia incapacitante e crônica que acarretava sérios comprometimentos nos campos da cognição, do desenvolvimento da motilidade e da linguagem, e de impedimento neuro-funcional. Nos últimos anos, alguns estudiosos referiram-se a “causas genéticas ou síndromes ocorridas durante o período de desenvolvimento da criança” (CUNHA, 2012, p. 19).

Hoje, sabemos que se trata de um “transtorno cerebral presente desde a infância, em qualquer grupo socioeconômico e étnico-racial” (MERCADANTE, 2009, p. 36).

Apesar das discórdias quanto às suas causas, os sintomas eram semelhantes, havendo uma tríade sintomática: prejuízo na comunicação – existindo distúrbios que variam desde um mutismo à ecolalia, à inversão pronominal e aos neologismos –; comportamento antissocial; estereotipias e maneirismos; manutenção de rotinas (BRASIL, 2013, p. 23).

 Com o passar do tempo, a curiosidade de estudiosos e o questionamento de pais e familiares, os estudos perseveraram, e outras características foram apontadas: dificuldades de percepção de sentimentos; “distúrbios do sono e da alimentação; problemas digestivos nos primeiros meses do nascimento; anomalias congênitas; e hiporrespostas ou hiper-respostas aos estímulos sensoriais” (RODRIGUES; SPENCER, 2010, p.18); o aparecimento dos sintomas, que se inicia antes dos três anos de idade; acometimento mais comum entre meninos – no entanto, quando presente em meninas, sua manifestação torna-se mais intensa; comprometimento intelectual em 70% a 80% dos casos (RODRIGUES; SPENCER, 2010, p.18). Tornou-se claro não haver um padrão fixo para sua manifestação, em virtude da diversidade dos mesmos sintomas (CUNHA, 2012, p. 20). Dessa forma, “nasceu” o termo Autismos.

Guring (DRAGO, 2012) utilizou o conceito estipulado por Bryson: autismo é um protótipo de um espectro de distúrbios relacionados a desordens de desenvolvimento neurológico.

Na década de 1980, o Autismo passou a ser nomeado como Transtorno Invasivo do Desenvolvimento (TID) (BRASIL, 2013, p. 24) não sendo mais considerado como um tipo de Psicose nem Esquizofrenia. Klin (2006, p. S4) conceitua o TID como “uma família de condições marcada pelo início precoce de atrasos e desvios no desenvolvimento das habilidades sociais, comunicativas e demais habilidades”. Desde 2014, é denominado pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) como Transtorno do Espectro Autista.

Apesar de haver vasta literatura, por mais de sessenta anos, o Transtorno do Espectro do Autismo ainda é desconhecido pela maioria da população brasileira, conforme afirma Suplino (2009).

Legislação

Em nosso país, a Lei no. 12. 764, de 27 de dezembro de 2012, também conhecida como Lei Berenice Piana, instituiu uma política nacional de proteção aos direitos das pessoas com o Transtorno do Espectro Autista. Dessa forma, estas passaram a ser consideradas como pessoas com deficiência, para todos os efeitos legais. Essa mesma lei, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro, classifica como pessoa com Autismo “aquela portadora de síndrome clínica caracterizada” com:

I. Deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;

II. Padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos (BRASIL, 2012, s.p.).

Em seu artigo segundo, inciso III, há menção sobre a necessidade do diagnóstico precoce, do atendimento multiprofissional e o acesso a medicamentos e nutrientes. Ainda no inciso V, há uma observação quanto à urgência de estímulos à inserção da pessoa autista no mercado de trabalho. Não menos importante, o inciso VII, trata do “incentivo à formação e à capacitação de profissionais especializados” no atendimento à pessoa com transtorno do espectro autista. Por fim, o artigo terceiro vem ratificar os direitos dos mesmos indivíduos. 

Chamo a atenção para o inciso III, quanto aos nutrientes. Ainda que não haja uma confirmação científica sobre determinados alimentos, muitas famílias relatam uma melhora comportamental de seus filhos quando os mesmos fazem uma dieta de restrição de glúten, açúcar e leite.

Voltando às leis, comprovada a importância e a necessidade de realizar a inclusão escolar de forma responsável e verdadeira, o Conselho Municipal de Educação do Rio de Janeiro, pela deliberação número 04, de 03 de dezembro de 2012, estabeleceu em seu artigo 5º a obrigação de cada instituição escolar de manter em seu quadro permanente um profissional especializado em educação especial.

Assim, paulatinamente, os direitos dos indivíduos com o Transtorno do Espectro Autista vêm sendo assegurados, transformando a vida dos mesmos e de suas famílias algo mais próximas da realidade em que todos nós vivemos.

Inclusão em museus

A participação ativa de indivíduos com o Transtorno do Espectro Autista em visitas a museus, exposições e outras atividades é de extrema importância. Os museus são ambientes agradáveis e favoráveis ao desenvolvimento cognitivo e social.

Ao nos aprofundarmos no estudo do Autismo, percebemos que as imagens chamam a atenção destes indivíduos, mais do que as palavras; e os museus estão repletos de pinturas, gravuras, esculturas, que possuem um enorme poder de atração para esse público.

Além do respeito e do compromisso afirmado por todos os profissionais envolvidos em receber pessoas com deficiência, de forma verdadeiramente inclusiva, dentro das instituições culturais, outras atitudes devem ser observadas e aplicadas. Dentre elas, destacamos:

  • uso de uma sinalização com imagens em portas, corredores ou outros locais, para que o indivíduo tenha noção de onde está e de onde vai entrar (ex: ilustração de dinossauro na entrada da sala dos dinossauros);
  • placas com imagens disponíveis para os profissionais que guiam as visitas (ex: ilustração do próximo local que será visitado; placa com alguém fazendo silêncio);
  • antecipação das atividades que serão realizadas durante a visitação, por auxílio de imagens (ex: primeiro momento da visita – 1º andar: sala dos répteis – foto dos répteis);
  • manter o tom de voz suave, com volume baixo, evitando ruídos desnecessários e altos, visto que podem causar desconforto;
  • evitar contato físico, pois alguns indivíduos com autismo podem ser sensíveis ao toque;
  • em se tratando de crianças é recomendável que o guia ajoelhe para ficar à sua altura e estabeleça um contato visual com o “pequeno” visitante; entretanto, se não acontecer uma conexão, não forçá-la.

Dessa forma, acreditamos que a recepção aos indivíduos com Autismo ocorrerá tranquilamente e renderá frutos maravilhosos!

Referências

BRASIL, LEI 12. 764/12, 27 de dezembro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em: 02 nov. 2013.

BRASIL, Ministério da Saúde. Linha de Cuidado para a atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no sistema único de saúde. Brasília – DF, 2013. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/autismo_cp.pdf. Acesso em: 12 nov. 2013

CAREY, B. Dr. Leon Eisenberg, pioneiro dos estudos do autismo, morre aos 87 anos. EUA: The New York Times. Publicado em: 23/09/2009. Disponível em: http://www.nytimes.com/2009/09/24/health/research/24eisenberg.html?_r=0. Acesso em: 17 nov. 2013.

CUNHA, E. Autismo e Inclusão: psicopedagogia e práticas educativas na escola e na família. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.

DRAGO, R. Síndromes: conhecer, planejar e incluir. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.

KLIN, A. Autismo e Síndrome de Asperger: uma visão geral. Brazilian Journal of Psychiatry. 2006, v. 28, suppl 1. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v28s1/a02v28s1.pdf. Acesso em: 14 out. 2013. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-44462006000500002 

MERCADANTE, M.T.; ROSÁRIO, M. C. Autismo e Cérebro Social. São Paulo: Segmento Farma, 2009.

RODRIGUES, J. M. C.; SPENCER, E. A Criança Autista: um estudo psicopedagógico. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2010.

SUPLINO, M. Currículo Funcional Natural: guia prático para a educação na área do autismo e deficiência mental. 3. ed. Rio de Janeiro: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2009.

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