Compartilhe/Share

Sumário interativo

A participação de pessoas com Síndrome de Down em museus: algumas reflexões sobre pesquisa e prática

Taáte Pereira Tomaz Silva e Jessica Norberto Rocha

Resumo: Nos últimos anos, apesar de visíveis avanços na acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiências nos museus e centros de ciências, ainda é pequeno o número de estratégias educativas e de acessibilidade que garantam seu uso pelo público com deficiência intelectual. A Síndrome de Down (SD) é a patologia mais antiga relacionada com a deficiência intelectual e a mais frequente que atinge sem distinção todas as etnias, gênero e classes socioeconômicas. Neste capítulo, apresentamos algumas reflexões sobre pesquisas e a participação de pessoas com Síndrome de Down em museus a partir de estudos bibliográficos..

Introdução

A luta pela inclusão social hasteia há algum tempo sua bandeira por uma sociedade mais igualitária, livre de barreiras físicas, sociais e comunicativas, a fim de que idosos, crianças, gestantes, pessoas com mobilidade reduzida, pessoas com deficiência – não importando sua condição (física, sensorial, intelectual) – possam viver com plenitude, apropriando-se de seus espaços, ambientes, oportunidades iguais aos demais indivíduos. 

No entanto, a prática do conceito de acessibilidade ainda se encontra em construção tanto na sociedade quanto na realidade dos centros e museus de ciência e cultura. O número de ações, tanto na prática quanto na pesquisa, que garantam seu uso por parte do público com deficiência intelectual ainda é pequeno.

Os dados do Guia de museus e centros de ciências acessíveis da América Latina e do Caribe (NORBERTO ROCHA et al., 2017a), por exemplo, revelam que pelo menos 110 instituições da região se autodeclararam acessíveis ou desenvolviam alguma atividade voltada para pessoas com deficiência, porém apenas 11 delas afirmaram disponibilizar acessibilidade e atividades inclusivas para pessoas com deficiência intelectual, sendo seis do Brasil (Quadro 1).

Quadro 1: Museus e centros de ciências que se autodeclaram acessíveis para pessoas com deficiência intelectual

InstituiçãoPaís/ EstadoTipo de deficiência intelectualAtividades inclusivas realizadas
Sala de Ciências (Sesc Amazonas) Brasil/ AmazonasTranstorno do espectro autistaAdequação dos conteúdos das exposições para atender pessoas com Transtorno do espectro autista.  
Museu de Ciências da Terra Alexis Dorofeef (UFV)Brasil/ Minas GeraisSíndrome de Down e pessoas com deficiência intelectual ou múltipla que frequentam APAEsAtividades para pessoas com Síndrome de Down e turmas de Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
Museu da Geodiversidade (UFRJ) Brasil/ Rio de JaneiroPessoas com deficiência intelectualVisitas e roteiros adaptáveis para pessoas com deficiência intelectual. Existem roteiros mais diretos e objetos para comparação.  
Museu Nacional (UFRJ)Brasil/ Rio de JaneiroPessoas com deficiência intelectual  O espaço “Ciência Acessível” tem material disponível ao toque que atende parcialmente este grupo.  
Centro de Divulgação Científica e Cultural (USP)Brasil/ São PauloSíndrome de Down e Transtorno do espectro autistaSão feitas adaptações em visitas para pessoas com Síndrome de Down, Transtorno do espectro autista e outro tipo de deficiência intelectual.
Museu de Saúde Pública Emílio Ribas – Instituto ButantanBrasil/ São PauloPessoas com deficiência intelectualPrograma educativo específico para a participação de pessoas com deficiência intelectual.
Museo Interactivo Mirador ChileTranstorno do espectro autistaMaterial impresso e disponível on-line para pessoas com Transtorno do espectro autista, com o objetivo de apoiar a visita ao museu.
Museo de Ciencias Naturales de La SalleColômbiaPessoas com deficiência intelectualHá atividades especificamente voltadas para pessoas com deficiência intelectual que podem ser programadas por meio do programa de inclusão.
Museo del Oro del Banco de la República  ColômbiaPessoas com deficiência intelectualOs guias foram capacitados para atender as pessoas com deficiência intelectual.
Museo Interactivo de Economía (MIDE)  MéxicoPessoas com deficiência intelectualPrograma de inclusão laboral para pessoas com deficiência intelectual.
Universum Museo de las Ciencias (UNIVERSUM)  MéxicoPessoas com deficiência intelectual  Possui visitas adaptadas às características intelectuais dos visitantes com deficiência intelectual.  
Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados de Norberto Rocha et al. (2017a).

Os dados do Quadro 1 indicam que, dentro desse grupo de 11 museus que declararam disponibilizar acessibilidade para pessoas com deficiência intelectual, sete afirmaram possuir atividades inclusivas para pessoas com deficiência intelectual, de forma geral, sem especificar; três museus destacam-se por atender pessoas com Transtorno do espectro autista (um deles desdobra suas ações para demais públicos, como Síndrome de Down) e dois museus, especificamente, realizam atividades acessíveis voltadas a pessoas com Síndrome de Down: o Museu de Ciências da Terra Alexis Dorofeef (UFV), que também atende a pessoas com deficiência intelectual ou múltipla, e o Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC), em São Paulo, que adapta suas visitas não apenas para pessoas com Síndrome de Down, mas também para pessoas com Transtorno do espectro autista e outros tipos de deficiência intelectual. Esses dados revelam que, na prática, tanto no Brasil quanto na América Latina, persiste o desafio de os museus de ciências organizarem suas exposições para o público com deficiência intelectual.

Se na prática ainda temos poucas atividades sendo desenvolvidas de forma sistemática nos museus de ciências, na pesquisa também vemos pouca expressividade. Norberto Rocha et al. (2017b) realizaram um mapeamento de artigos publicados em periódicos até 2016 que abordassem acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiências em museus, espaços científico-culturais e ações de divulgação científica no Brasil. Dentre os 54 textos encontrados em 43 revistas latino-americanas e estrangeiras, nenhum abordava especificamente a deficiência intelectual, enquanto outros tipos de deficiência foram explorados com maior frequência. Em face a essa questão, as autoras expõem: “Parece-nos que há uma grande incapacidade por parte dos museus, dos espaços científico-culturais e das ações de divulgação científica, de inclusão deste público e também de realização de estudos sobre ele” (NORBERTO ROCHA et al., 2017b, p. 196, tradução nossa).

Diante desse contexto, este capítulo faz parte de uma pesquisa de mestrado (em andamento) que tem como objetivo analisar a experiência de pessoas com Síndrome de Down e de seus familiares em museus de ciências. Para tanto, destacamos aqui alguns estudos e experiências encontradas até o presente momento, que fazem parte de nosso arcabouço teórico, sobre/de pessoas com Síndrome de Down, ora como visitantes, ora como colaboradores, seja na confecção de materiais acessíveis seja atuando como mediadores nesses locais.

A pessoa com Síndrome de Down

A Síndrome de Down é a patologia mais antiga relacionada com a deficiência intelectual e a mais frequente que atinge sem distinção todas as etnias, gênero e classes socioeconômicas. Nasce, em média, 1 a cada 650-1000 gestações (SBP, 2020; MALT et al., 2013), e estima-se que, no Brasil, existiam, no ano do desenvolvimento do documento Diretrizes de atenção à pessoa com Síndrome de Down, em 2013, mais de 300 mil pessoas com SD (BRASIL, 2013, p. 4).

A Síndrome de Down (SD), também conhecida como Trissomia do 21 (T21), é uma anomalia genética. Primeiramente foi classificada como uma manifestação clínica, em 1866, pelo médico inglês John Langdon Down, em um trabalho publicado no qual foram descritas algumas características das pessoas com a síndrome.

Historicamente, pessoas com SD foram perseguidas e segregadas. Durante muito tempo, esses indivíduos foram privados de experiências fundamentais para o seu desenvolvimento porque não se acreditava que eram capazes de aprender e de viver em sociedade (CAMPOS, 2005; SAAD, 2003). De acordo com Bissoto (2005), essa estigmatização também ocorre no campo das concepções quanto ao desenvolvimento cognitivo e aos processos de aprendizagem da pessoa com Síndrome de Down que ainda são estereotipados, gerando concepções equivocadas que acabariam por prejudicá-las em seu desenvolvimento como indivíduos dotados de personalidade e singularidade. 

Hoje, sabemos que a SD não é uma doença, e sim uma condição genética que tem tratamento e deve ser acompanhada pela família e por uma equipe multiprofissional desde a tenra idade da criança, algo que será decisivo para a saúde, o bem-estar, o desenvolvimento, o processo de aprendizagem e a qualidade de vida da pessoa com a síndrome (BRESSAN et al., 2017; SILVA, 2007). Estudos têm demonstrado aumento na expectativa de vida dos pacientes com SD, chegando a ultrapassar a sexta década de vida (RIVERA, 2007). Esse aumento se deve consideravelmente aos progressos na área da saúde, sobretudo no campo da cirurgia cardíaca, a partir da segunda metade do século XX (TEMPSKI et al., 2011).

O aumento da sobrevida e do entendimento das potencialidades das pessoas com Síndrome de Down tem levado à elaboração de diferentes programas educacionais, com vistas à escolarização, ao futuro profissional, à autonomia e à qualidade de vida, todavia, ainda há um longo caminho a ser trilhado (BRASIL, 2013).  Muitas pessoas são saudáveis e conseguem ter qualidade de vida desempenhando todas as funções como qualquer pessoa na sociedade, como estudar, casar, ter relações sexuais, trabalhar, ter lazer, praticar esportes etc.

Além do direto à educação formal, as pessoas com SD têm direito de participar e se engajar em momentos de aprendizagem que não acontecem necessariamente dentro dos muros das escolas. Esse é o caso da aprendizagem em museus e centros de ciências, que, devido às suas peculiaridades, possibilitam a aprendizagem por livre escolha (FALK; DIERKING, 2000). Por meio de experiências multissensoriais e imersivas, diversidade de linguagens, além de uma programação intensa de atividades que abordam assuntos de ciência e tecnologia, eles podem contribuir para seu processo de aprendizagem.

A participação das pessoas com SD nos museus

A fim de compreender como têm ocorrido a prática e a pesquisa sobre a participação de pessoas com SD em museus, recorremos ao PublicAcessibilidade (MCCAC; INCT-CPCT, 2020) – um projeto do Grupo Museus e Centros de Ciências Acessíveis que mapeia e lista trabalhos acadêmicos disponíveis on-line, em português, inglês e espanhol, que têm como temáticas acessibilidade e inclusão em museus, centros de ciências, ações culturais e divulgação científica. Sua base de dados é atualizada a cada seis meses a partir de informações disponíveis em repositórios científicos digitais, como Scopus, Web of Science, Scielo, banco de teses e dissertações CAPES, entre outros, e contém publicações de 1926 a 2021.

Em uma busca realizada em dezembro de 2020, quando lançada sua última atualização, a base continha 534 itens. Desses, encontramos 19 trabalhos acadêmicos relacionados à deficiência intelectual, publicados entre os anos de 1953 e 2019: nove sobre Transtorno do espectro autista; oito sobre deficiência intelectual em geral (leve e moderada; cognitiva) e apenas dois sobre Síndrome de Down (Quadro 2).

Quadro 2: Trabalhos acadêmicos relacionados a pessoas com deficiência intelectual

AnoTítuloOnde foi publicadoTipo de textoDeficiência(s) abordada(s)
1953The Museum and the Handicapped (Os museus e os deficientes)Museum InternationalArtigoIntelectual
1981A new source of hope: a scheme for mentally handicapped children in Tunisia (Uma nova fonte de esperança: um esquema para crianças com deficiência mental na Tunísia)Museum InternationalArtigoIntelectual
2013Improving the museum experiences of children with autism spectrum disorders and their families: an exploratory examination of their motivations and needs and using web‐based resources to meet them (Melhorando as experiências de crianças com transtornos do espectro autista e de suas famílias em museus: uma análise exploratória de suas motivações e necessidades, usando recursos da Web para melhor  atendê-los)Curator: the Museum JournalArtigoTranstorno do espectro autista
 Examination of a museum program for children with autism (Análise de um programa de museu para crianças com autismo)Journal of Museum EducationArtigoTranstorno do espectro autista
2014Contribuições dos espaços não formais para o ensino e aprendizagem de ciências de crianças com Síndrome de DownUniversidade Federal de Goiás DissertaçãoSíndrome de Down
2014Imagine your bedroom is the entrance to the zoo: Creative relaxation – exploring and evaluating the effectiveness of a person-centred programme of relaxation therapies with adults with a mild to moderate disability (Imagine que seu quarto é a entrada para o zoológico: Relaxamento criativo – explorando e avaliando a eficácia de um programa de terapias de relaxamento centrado em adultos com deficiência intelectual leve a moderada)British Journal of Learning DisabilitiesArtigoIntelectual
2015Identification of potential methods of professional support for museum educators working with  children with cognitive disabilities in museums (Identificação de métodos potenciais de apoio profissional para educadores de museus que trabalham com crianças pequenas com deficiência cognitiva em museus)Research informing the practice of museum educators: diverse audiences, challenging topics, and reflective praxis.ArtigoIntelectual
2016Considering the museum experience of children with autism (Considerando a experiência de crianças com autismo no museu)Curator: the Museum JournalArtigoTranstorno do espectro autista
 2016Social participation of families with children with spectrum disorder in a science museum (Participação social de famílias com crianças com transtorno do espectro do autismo em um museu de ciências)Museums & Social IssuesArtigoTranstorno do espectro autista
 2016Engaging children with autism at historic sites: developing an audience-appropriate curriculum (Engajando crianças com autismo em locais históricos: desenvolvendo um currículo adequado ao público)Journal of Museum EducationArtigoTranstorno do espectro autista
2017Acessibilidade informacional para usuários com transtorno de espectro autista na bibliotecaRevista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação.ArtigoTranstorno do espectro autista
2017Supporting transitions: cultural connections for adults with autism spectrum disorders (Apoiando transições: conexões culturais para adultos com transtornos do espectro autista)Journal of Museum EducationArtigoTranstorno do espectro autista
2017Virtual anastylosis of greek sculpture as museum policy for public outreach and cognitive accessibility (Anastilose virtual de escultura grega como política de museu para divulgação e acessibilidade cognitiva)Journal of Electronic ImagingArtigoIntelectual
2017Um convite a “novas estéticas ensinantes e aprendentes” com jovens com Síndrome de Down no Museu do AmanhãRevista AlephArtigoIntelectual/ Síndrome de Down
2018Práticas educativas e deficiência intelectual: uma imersão na acessibilidade culturalVI Encontro Nacional de Acessibilidade CulturalAnais de congressosIntelectual
2018A linguagem simples como acessibilidade para pessoas com deficiência intelectual na experiência do Cosmos no Museu do Amanhã.Universidade Federal FluminenseDissertaçãoIntelectual/ Síndrome de Down
2019(Re) pensando a acessibilidade em ambientes culturais para pessoas com deficiência visual e transtorno do espectro autista.Revista Educação, Artes e InclusãoArtigoTranstorno do espectro autista
2019Ocio inclusivo para personas en el espectro del autismo: algunas experiencias en museos (Lazer inclusivo para pessoas com transtorno do espectro autista: algumas experiências em museus)Eikón ImagoArtigoTranstorno do espectro autista
2019Estratégias para mediação de crianças e jovens com deficiência intelectual no Museu da Geodiversidade (IGEO/UFRJ)Universidade Federal do Rio de JaneiroTCCIntelectual
Fonte: Autoria própria com base nos dados do PublicAcessibilidade (MCCAC; INCT-CPCT, 2020). Títulos dos artigos estrangeiros: tradução nossa.

Os dois trabalhos listados que abordam especificamente a SD são o trabalho de Pina (2014), que trata das contribuições dos espaços não formais de ensino para a aprendizagem de ciências em crianças com a síndrome, e o de Silva et al. (2017), que aborda as impressões e experiências de uma visita de um grupo de cinco jovens com Síndrome de Down no Museu do Amanhã, localizado no Rio de Janeiro. Destacamos também o estudo de Mascarenhas (2018), que se intitula como um trabalho voltado para pessoas com deficiência intelectual e descreve a confecção de um guia com linguagem simples e acessível para esse público no Museu do Amanhã.

Pina (2014) descreve alguns dos espaços não formais de educação de Goiânia. Dentre eles, foca no Museu de História Natural do Memorial do Cerrado do Instituto do Trópico Subúmido da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e discorre a respeito dos conteúdos científicos possíveis de serem aprendidos e os métodos utilizados nele. Por meio das falas do coordenador, de um mediador do espaço e dos professores que acompanham as crianças com Síndrome de Down ao museu, o autor destaca as contribuições dos espaços não formais de educação para crianças com SD, por exemplo, a perspectiva de inclusão, de sociabilização, de cooperação e principalmente de aprendizagem:

[…] o uso de espaços não formais para o ensino de Ciências para crianças com Down, quando bem direcionados e aproveitados da forma esperada pelos idealizadores, atende muito bem às expectativas do professor e, consequentemente, deste aluno que requer, como todos, atenção diferenciada. Em todos os casos, o encantamento e o estímulo propiciado por esses espaços é um importante diferencial no processo educativo (PINA, 2014, p. 86).

O autor ainda afirma que, para pessoas com SD e/ ou deficiência intelectual, “é importante que estejam em ambiente de aprendizagem apropriado, com estratégias diversificadas, de modo que possam adquirir, além do conhecimento, segurança e autonomia” (PINA, 2014, p. 38) e que os espaços não formais de educação – como os museus de ciências, por meio das atividades que enfatizem aspectos cognitivos, como a percepção, a atenção, a memória e as linguagens – constituem-se, portanto, necessários para o processo de aprendizagem. Os conhecimentos científicos presentes também propiciam a preparação do cidadão, de forma mais adequada, para uma leitura científica do mundo..

Outra iniciativa encontrada em nossas buscas é o relato de experiência, intitulado Um convite a “novas estéticas ensinantes e aprendentes” com jovens com Síndrome de Down no Museu do Amanhã, realizado por Silva et al. (2017), de pesquisadores da Universidade Federal Fluminense cujo interesse está voltado ao estudo da autonomia de pensamento de pessoas com deficiência intelectual, mais especificamente pessoas com Síndrome de Down. Nesse trabalho, são relatadas as impressões e experiências de uma visita ao Museu do Amanhã (RJ) realizada por um grupo de cinco jovens com Síndrome de Down, acompanhados de duas pesquisadoras de mestrado, uma aluna bolsista de iniciação científica do curso de Cinema, além da orientadora das pesquisas do grupo. A visita teve como objetivo realizar uma experimentação filosófica de pensamento com esses jovens para que eles pudessem falar a respeito do que pensam de si e da vida, de noções de sustentabilidade e demais questões filosóficas, como relação de alteridade, polifonia.

Durante a visita, buscou-se enfocar a primeira parte da exposição principal do museu, denominada Cosmos, que se propõe a instigar nos visitantes questionamentos a respeito da origem do universo e dos demais seres vivos, assim como o ser humano na Terra, desdobrando-se em aquilo que somos e o que nos constitui como humanos. Nesse momento, as pesquisadoras que acompanharam a visita sinalizaram a questão da dificuldade de aprendizagem em pessoas com SD, uma vez que, ao presenciarem uma experiência tão abstrata quanto o vídeo, exibido na instalação Cosmos – uma cúpula de formato semelhante a um planetário que, por meio de imagens e sons, narra a história da vida no planeta e se debruça a fazer diversas questões profundas, como: “De onde viemos?”, “Para onde iremos?” –, não conseguiram compreender toda a riqueza da mensagem.

As autoras argumentaram que, através de perguntas geradoras, como “O que vocês entenderam sobre o que foi transmitido naquela sala (de projeção)?”, os jovens, por meio do relato de suas vidas e do resgate de experiências pessoais, puderam se abrir sobre essa questão e muitas outras que foram surgindo organicamente. Embora algumas respostas fossem desconectadas com a proposta da visita e da pergunta, esse momento foi considerado importante para a abertura de uma escuta mais atenta entre pesquisador e sujeitos pesquisados. Por intermédio da proposta do Museu do Amanhã, que se apresenta como um espaço que pode suscitar reflexões filosóficas, fundamentais para a compreensão da condição humana e sua relação com o meio ambiente, de acordo com as pesquisadoras que acompanharam a visita, foi possível estabelecer “uma rica experiência de pensamento que possibilita a esses jovens processos de reorganização de seus padrões de compreensão do mundo e da vida” (SILVA et al., 2017, p. 1). Em suas considerações finais, descrevem a experiência vivenciada:

Mesmo sendo essa nossa primeira inserção nesse território da pesquisa, podemos projetar que, de tudo que foi dito, vivido e experimentado, consideramos que a experiência com o Museu do Amanhã é um espaço/tempo fértil para que jovens com Síndrome de Down possam estabelecer relações estéticas que lhes suscitem pensar a respeito de suas existências no mundo. E que estas se apresentam como uma rica experiência que possibilitou a esses jovens pensar suas relações com o mundo e suas próprias vidas (SILVA et al., 2017, p. 13).

A partir dessa experiência no Museu do Amanhã, foi produzida a dissertação de Mascarenhas (2018), que não só relata a participação de pessoas com SD em museus de ciências como visitantes, mas também como colaboradores, visto que essas pessoas construíram e validaram a produção de um Guia com linguagem simples sobre o Cosmos, no Museu do Amanhã, direcionado a pessoas com SD e demais deficiências intelectuais.

Mascarenhas (2018) destaca que, na visita anterior ao Cosmos, realizada em 2017, devido à linguagem poética e por se tratar de uma abordagem cosmológica, filosófica e até mesmo física, esses jovens não conseguiram compreender parte significativa da mensagem veiculada na instalação, sendo verificada, assim, a necessidade de uma decodificação da linguagem que se adequasse às especificidades e individualidades desse público-alvo.

Dessa forma, diante da demanda exposta relacionada à falta de materiais adaptados para pessoas com deficiência intelectual em museus, o estudo de Mascarenhas (2018) teve como objetivo elaborar um livro com uma linguagem mais simples voltada a superar as barreiras comunicacionais e a garantir a autonomia desses visitantes. Esse livro teve como arcabouço teórico diversos documentos que tratam de acessibilidade e inclusão, deficiência intelectual e princípios do Desenho Universal para Aprendizagem em linguagem simples. Na produção, o material contou como a colaboração de membros da equipe do Museu do Amanhã, como também com a participação de jovens com Síndrome de Down, conferindo-lhes protagonismo nesse processo. 

Dois grupos (grupo A e grupo B) de jovens com Síndrome de Down participaram da pesquisa. A visita com os dois grupos ocorreu em dias diferentes. O grupo A era formado por quatro mulheres e um homem; todos com ensino fundamental completo e uma com ensino médio completo, com idades entre 23 e 48 anos. O grupo B era composto por três mulheres e dois homens, todos com ensino fundamental completo e uma com ensino médio completo, com idades que variavam entre 22 e 42 anos. O estudo aponta diferenças entre as respostas dos dois grupos. Os participantes do grupo A apresentaram fatos sobre suas vidas, experiências pessoais, no entanto, não foram encontradas quaisquer respostas sobre o que faz parte do Cosmos. O grupo B conseguiu, mesmo dentro de suas limitações, dialogar sobre informações complexas do campo da ciência física e da cosmologia, e muitos deles puderam entender que também fazem parte do Cosmos.

Ainda sobre essa diferença na percepção dos grupos, Mascarenhas (2018) salienta que:

 […] percebe-se que o Grupo A, apesar da experiência ter provocado reflexões sobre suas condições existenciais, permaneceu em uma enunciação discursiva mais cosmogônica e vinculada a conceitos criacionistas, enquanto o Grupo B esboça uma visão mais cosmológica e, portanto, afinada com a concepção científica da evolução do Universo em seu todo, o que valida os objetivos de nosso guia (MASCARENHAS, 2018, p. 57).

Assim, destacamos o aspecto inovador do trabalho de Mascarenhas (2018) com a criação de um guia, em linguagem simples para pessoas com deficiência intelectual; a apresentação em detalhes da construção do livro acessível sobre o Cosmos e a importante participação de pessoas com Síndrome de Down no processo de validação do livro.

Por fim, vale trazer um exemplo de prática da participação de pessoas com SD em museus, mas que não encontramos registros em trabalhos acadêmicos: a experiência do Museu do Futebol do Estado de São Paulo, com a inclusão da pessoa com SD não somente na perspectiva de visitante, mas também como profissional. O projeto Deficiente Residente, “tem como objetivo qualificar o atendimento a pessoas com deficiência que visitam o Museu do Futebol, a partir das necessidades indicadas por deficientes” (NÚCLEO…, 2018).

O projeto consiste na residência remunerada de pessoas com diversos tipos de deficiência dentro do museu durante um período determinado. Por meio da convivência com os residentes, é adquirida uma transformação atitudinal da equipe, que reverbera na criação e no desenvolvimento de adaptações das exposições e de materiais lúdico-pedagógicos acessíveis, tais como atividades e jogos educativos oferecidos ao público.

Em sua primeira temporada, entre 2010 e 2015, nove pessoas com diferentes deficiências integraram, por seis meses, a equipe do Educativo do Museu, recebendo uma remuneração por isso. Em sua segunda temporada, agosto de 2017, o projeto contou com a colaboração de Estela Pereira de Almeida, jovem com Síndrome de Down que foi selecionada para trabalhar por três meses com a equipe de educadores e orientadores de público do museu. Como resultado dessa parceria em que o museu foi guiado pelo olhar de Estela, uma cartilha foi produzida, servindo de arcabouço teórico para nosso trabalho, principalmente no que se refere à indicação do uso de recursos imagéticos e à exploração de materiais concretos para a apreensão de conteúdo de pessoas com SD em museus (NÚCLEO…, 2018).

Considerações finais

Conforme observado, há pouca literatura a respeito da relação de pessoas com SD e espaços científico-culturais, especialmente, museus de ciências. Esse dado ressalta que é importante discutir e analisar essa temática na academia e que trabalhos desenvolvidos na área têm grande potencial de ineditismo. Dentre os poucos trabalhos encontrados, a maioria pode ser caracterizada como relatos de experiências. Percebe-se, em muitos desses relatos, um forte sentimento de autocrítica das políticas de acessibilidade nesses espaços, além de um caráter inovador e necessário e com foco na inclusão atitudinal e comunicacional para o acolhimento e a inclusão de pessoas com SD e demais deficiências intelectuais.

Nesses trabalhos, a interação entre pessoas com SD e museus se demonstrou potencialmente educativa e envolvente tanto para elas e suas famílias quanto para esses espaços não formais de educação. As pessoas com SD, visto que se apropriaram de espaços historicamente “elitizados”, segregadores e colonizadores, puderam, por meio de suas experiências como visitantes e colaboradores, construir um museu mais inclusivo e acessível.

Para os museus, a visita e a presença de pessoas com deficiência reforçam o desafio de atrair públicos que ainda não são frequentes e de conceder voz e protagonismo às pessoas com deficiência.  Ao avaliar o potencial educativo dos museus de ciências para a aprendizagem de conhecimentos científico-culturais por pessoas com Síndrome de Down, buscamos reforçar uma reflexão sobre o cotidiano desses espaços não formais de educação, favorecendo, de alguma forma, a identificação e a diminuição das barreiras já conhecidas – atitudinais, comunicacionais e físicas – para, assim, melhor receber o público e proporcionar a sua autonomia, com comprometimento intelectual nos museus de ciências.

Referências

BISSOTO, M. L. Desenvolvimento cognitivo e o processo de aprendizagem do portador de síndrome de Down: Revendo concepções e perspectivas educacionais. Ciências & Cognição, Rio de Janeiro, v. 4, p. 80-88, 2005. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-58212005000100009. Acesso em: 06 abr. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Diretrizes de atenção à pessoa com Síndrome de Down. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.

BRESSAN, R. C. et al. Reverberações do atendimento em saúde na construção do vínculo mãe-bebê com síndrome de Down. Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento, São Paulo,  v. 17, n. 2, p. 43-55, dez.  2017.   Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-03072017000200005&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 1 dez. 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/cadernosdisturbios.v17n2p43-55

CAMPOS, M. J. C. Autopercepções em crianças e jovens com Síndroma de Down – Estudo da competência percebida e da aceitação social. Dissertação (Mestrado em Ciências do Desporto – Atividade Física Adaptada) – Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física, Universidade do Porto, Porto, 2005.

FALK, J.; DIERKING, L. D. Lessons without limit: how free-choice learning is transforming education. Rowman Altamira, 2002.

MALT, E. A. et al. Health and disease in adults with Down syndrome. Tidsskr Nor Laegeforen, v. 133, n. 3, p. 290-294, 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.4045/tidsskr.12.0390. Acesso em: 8 abr. 2020.

MASCARENHAS, D. F. P. A linguagem simples como acessibilidade para pessoas com deficiência intelectual na experiência do Cosmo no Museu do Amanhã. 2018. 15 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Biologia, 2018.

MCCAC – MUSEUS E CENTROS DE CIÊNCIAS ACESSÍVEIS; INCT-CPCT – INSTITUTO NACIONAL DE COMUNICAÇÃO PÚBLICA DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. PublicAcessibilidade: mapeamento de produções acadêmicas sobre acessibilidade, museus e divulgação científica. DOI: http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.16928.81920. Disponível em: https://grupomccac.org/publicacessibilidade/. Acesso em: 20 dez. 2020.

MUSEU DO FUTEBOL. Projeto Deficiente Residente. São Paulo, 2018. Disponível em: https://museudofutebol.org.br/acessibilidade/projeto-deficiente-residente/. Acesso em: 8 abr. 2020.

NORBERTO ROCHA, J. et al. Guia de museus e centros de ciências acessíveis da América Latina e do Caribe. 2017a. Rio de Janeiro. Acesso em: 20 dez. 2020.

NORBERTO ROCHA, J. et al. PublicAcessibilidade, acessibilidade em museus, espaços científico-culturais e ações de divulgação científica no Brasil. In: MASSARANI, Luisa et al. Aproximaciones a la investigación en divulgación de la ciencia en América Latina a partir de sus artículos académicos. Rio de Janeiro: Fiocruz – COC, 2017b. Disponível em: https://grupomccac.org/wp-content/uploads/2018/11/Aproximaciones-a-la-investigación-en-divulgación-de-la-ciencia-en-América-Latina-a-partir-de-sus-art%C3%ADculos-académicos.pdf. Acesso em: 8 abr. 2020.

NÚCLEO EDUCATIVO DO MUSEU DO FUTEBOL. Museu do futebol para todos: volume 1. São Paulo: IDBrasil Cultura, Educação e Esporte, 2018.

PINA, O C. Contribuições dos espaços não formais para o ensino e aprendizagem de ciências de crianças com Síndrome de Down. 92 p. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.

RIVERA, I. R. et al. Cardiopatia congênita no recém-nascido:da solicitação do pediatra à avaliação do cardiologista. Arq. Bras. Cardiol., São Paulo,  v. 89, n.1,  jul. 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0066-782X2007001300002. Acesso em: 8 abr. 2020.

SAAD, S. N. Preparando o caminho da inclusão: dissolvendo mitos e preconceitos em relação à pessoa com Síndrome de Down. Revista Brasileira de Educação Especial, v. 9, n. 1, p. 57-78, 2003. Disponível em: https://www.abpee.net/pdf/artigos/art-9-1-6.pdf. Acesso em: 12 abr.  2020.

SBP – Sociedade Brasileira de Pediatria. Diretrizes de atenção à saúde de pessoas com Síndrome de Down. Rio de Janeiro: SBP, Departamento Científico de Genética, mar. 2020. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/22400b-Diretrizes_de_atencao_a_saude_de_pessoas_com_Down.pdf. Acesso em: 13 dez. 2020.

SILVA, N. C. B. da. Contexto familiar de crianças com Síndrome de Down: interação e envolvimento paterno e materno.  181f. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) – Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007.

SILVA, D. M. e; OLIVEIRA, A. C.; MASCARENHAS, D. F. P.; SILVA, K. S. Um convite a “Novas Estéticas Ensinantes e Aprendentes” com jovens com Síndrome de Down no Museu do Amanhã. Revista Aleph, Niterói, dez. 2017. DOI: https://doi.org/10.22409/revistaleph.v0i29.39230. Disponível em: https://periodicos.uff.br/revistaleph/article/view/39230/22667. Acesso em: 25 abr. 2020.

TEMPSKI, P. Z.; MIYAHARA, K. L.; ALMEIDA, M. D.; OLIVEIRA, R. B.; OYAKAWA, A. Protocolo de cuidado à saúde da pessoa com Síndrome de Down. Acta Fisiátrica, São Paulo, v. 18, n. 4, dez. 2011. DOI: https://doi.org/10.5935/0104-7795.20110003. Acesso em: 25 abr. 2020.

Share this Page